Andanças na metrópole

As camadas de história encobertas em construções, ruínas e paisagens

Andanças na metrópole - Vicente Vilardaga
Vicente Vilardaga

A antiga zona do meretrício do Bom Retiro

Área de confinamento de prostitutas foi projeto do interventor Adhemar de Barros

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São Paulo

Quem passa hoje pelas ruas Aimorés e Cesare Lombroso, antes chamada de Itaboca, no Bom Retiro, se depara com uma profusão de lojas de roupas finas femininas. Essa paisagem comercial, porém, situada ao lado da linha de trem, esconde um passado de opressão e vergonha.

Ali funcionou a zona de prostituição mais conhecida de São Paulo entre as décadas de 1940 e 1950. Foi implantada por decreto pelo interventor no estado, Adhemar de Barros, nomeado por Getúlio Vargas durante a ditadura do Estado Novo, para ser uma zona de confinamento de serviços sexuais que não interferisse na cotidiano da cidade.

Prostituicão no Bom Retiro
Antiga rua Itaboca, onde se exerceu a prostituicão no bairro do Bom Retiro entre 1940 e 1953 - Reprodução São Paulo Passado

Motivado por ideias higienistas e eugenistas, Adhemar, médico de formação, queria eliminar a baixa prostituição da parte próspera da capital, entre a rua Libero Badaró e a avenida São João, incluídas num plano de reurbanização, e concentrá-la em um único lugar que fosse fortemente controlado pela polícia e equipado com postos de saúde que servissem basicamente para ministrar penicilina para combater a sífilis e a gonorreia.

Para justificar sua iniciativa despótica, o governador alegava que a medida traria benefícios ao "oferecer um interessante campo para estudos sociais". Também argumentava que favoreceria a ordem, saúde e a moralidade pública.

Rua Cesare Lombroso
A rua Cesare Lombroso, antes Itaboca, abriga hoje lojas finas de roupas femininas - Vicente Vilardaga

Foi, porém, uma medida cruel que forçava as prostitutas a ficarem isoladas numa espécie de prisão a céu aberto. Enquanto controlava o baixo meretrício, que servia aos trabalhadores e à população pobre da capital, passava pano para a prostituição de luxo que continuava a ser exercida sem freios em outros locais e nos cabarés frequentados pela elite.

Nas ruas Aimorés e Itaboca ficavam as mulheres de baixa classe social, muitas que fugiam da guerra na Europa, e migrantes recém-chegadas na cidade que não encontravam outra ocupação. Estima-se que houvesse na região cerca de 150 casas de tolerância, expressão baseada na ideia de que a prostituição era um mal necessário, e mais de mil meretrizes no final de década de 1940.

Foto do Acervo do Museu Banespa/Divulgação
O interventor Adhemar de Barros lança a pedra fundamental do edifício Altino Arantes, em 1939 - Acervo do Museu Banespa/Divulgação

O decreto que criou a zona do Bom Retiro foi baixado por Adhemar no final de 1939 e vigorou até 1953. A população que vivia anteriormente nas casas térreas e sobrados geminados que ali havia foi desalojada para atender a vontade do governo.

No seu livro "O prazer da noite: prostituição e códigos da sexualidade feminina em São Paulo, 1890-1930", a historiadora Margareth Rago, fala do aumento da preocupação com a prostituição a partir do momento em que começam a ser implantados grandes planos de transformação das cidades.

Rua Aimorés
A prostituição na rua Aimorés era para os remediados e na Itaboca, para os menos favorecidos - Vicente Vilardaga

Em São Paulo, a avenida São João acolheu a chamada Cinelândia Paulistana que buscava ser um lugar "puro", de diversão para as famílias e onde não deveria haver espaço para prostitutas. Isolá-las era um princípio do chamado regulamentarismo francês, criado no início do século 19. Preconizava que as cortesãs deviam ocupar um espaço restrito sob controle absoluto.

Segunda a antropóloga e historiadora Paula Janovitch, que promove uma visita guiada na região durante a Jornada do Patrimônio, evento da Prefeitura que acontece em agosto, há muita discussão sobre os motivos que levaram Adhemar a escolher o Bom Retiro como local mais apropriado para instalar a zona de confinamento de prostitutas.

Mas a voz corrente é que a escolha do bairro foi uma maneira de controlar melhor os estrangeiros ali presentes colocando um elemento perturbador nas suas rotinas. Possuído pelo espírito nefasto do Estado Novo ele tentava afetar a vida cotidiana e estigmatizar os imigrantes. O lugar também tinha uma geografia favorável para as ideias repressoras do governo: a linha férrea separava o Bom Retiro do bairro dos Campos Elíseos, com uma população rica.

Em 1953, o prefeito Jânio Quadros suspendeu o alvará de funcionamento dos bares nas ruas Itaboca, José Paulino e Aimorés, desarticulando a zona de prostituição. Por ironia, porém, em 1957, a Câmara Municipal murou o nome da rua Itaboca para Cesare Lombroso, médico eugenista que escreveu o livro "A Mulher Delinquente, a Prostituta e a Mulher Normal".

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