"Mãe, você viu a vereadora lá de Pernambuco dizendo que é castigo de Deus ter tido um filho com deficiência e que mulheres nessa condição vieram a este mundão para sofrer?". Minha velha emudeceu, ficou um tanto sem graça, claramente consternada, mas não teve energia de retrucar.
Tenho alguma ciência do custo que minha vida causou para a falta de mais vida para minha mãe. Doente pela poliomielite de quase morte, ainda bebê, a manutenção da minha existência só foi possível com a doação não de um pedaço dela, mas de muito de sua energia, de suas emoções, de sua disposição e de tudo que significava para ela dar a sua cria sentido de seguir em frente.
Não fosse pelo nosso cotidiano repleto de elementos que já a fazia se anular para buscar conserto para mim –não conseguia avançar profissionalmente, não tinha grandes amores, não tinha lazer, nem passava batom—, não faltavam nas esquinas mensageiros do divino, com ou sem microfone, dizendo que ela tinha sido castigada, pensamento que não era só punitivo e misógino a minha mãe, era também odioso a mim.
Não fossem parlamentares e governantes que castigam a pluralidade humana há séculos com suas práticas excludentes, corruptas, arrogantes, inábeis e antidemocráticas, algumas vezes empunhando o interesse do que consideram fé ou abertamente valores pessoais, o peso das mazelas sociais, que nada tem a ver com deficiências, não machucaria tanto experiências maternas e de famílias.
O fracasso de não termos cidades, direitos e olhares amigáveis com o diverso, não termos aprendido o básico do espírito de humanidade que entende que a diferença é a marca que nos faz evoluir, recai ainda, de forma insolente, sobre as vítimas.
Seríamos nós, pessoas com deficiências físicas, intelectuais, sensoriais os castigos de nossas mães ou seriam vereadoras que usam uma tribuna pública para atacar pessoas que labutam por dar dignidade os castigos de toda uma sociedade?
Se houvesse menos resistência para que todo tipo de criança pudesse estudar junto, se houvesse mais sim para o trabalho a pessoas que não ficam bem em paletó, se não entendêssemos como um mero problema do outro as questões que apartam viventes, seguramente, nossas mães seriam menos apedrejadas, nós poderíamos ser mais livres como somos.
Em meu modo de ver, se algo foi concedido pelo divino a mães, pais e toda família com pessoas com deficiência foi uma poção enorme de coragem e de força incomensuráveis, à revelia do torcer contra de muita gente, para desfilar na cara do universo como pavimentar possibilidades infinitas de praticar o estar vivo.
Aos poucos, paramos de apedrejar as pessoas por sua raça, mais do que isso, já há coro para celebrar o orgulho de ser preto, amarelo ou originário. Denunciamos, nos incomodamos e combatemos agressões de gênero. Vamos derrubar, é óbvio, qualquer impedimento ao casamento gay.
É urgente, urgente, que paremos também de condenar o povo torto, que possamos ser malacabados, prejudicados do escutador de novela, puxadores de cachorro, tchube das ideias e qualquer outra dita e vista estranheza de ser. Nosso castigo, por enquanto, é justamente quererem nos impedir de mudar o mundo.
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