Eu tentava, mas não conseguia abrir completamente os olhos, apenas uma pequena fresta por onde entrava uma luz branca vinda do teto. Meu corpo estava pesado, completamente imóvel. Tinha a sensação de estar amarrado, semimorto. Havia sobrevivido a mais uma cirurgia reparadora, agora, com oito horas de duração. Tinha dez anos de idade.
O procedimento era urgente, uma vez que o avanço da escoliose era tão grande que comprimia meus pulmões e eu poderia morrer sufocado em algum momento. Dr. Nascimento, um paraibano inesquecível, foi quem me renovou a chance de viver. O inchaço e a desfiguração do rosto, por ter ficado durante todo o procedimento de bruços, eram o de menos.
Passava, a partir daquele dia, carregar nas entranhas uma haste de metal, com mais de 20 centímetros, o que sustenta até hoje minha coluna. Nas costas, uma sutura com cerca de cinquenta pontos. Fiquei um ano, isso mesmo, um ano engessado, do queixo ao cóccix.
Quando li a notícia de que a cidade de Nova York, nos EUA decretou emergência por causa da ameaça do vírus da poliomielite, a paralisia infantil, desastre humano do qual fui uma das derradeiras vítimas no Brasil, fui tomado pelo desconforto daquelas lembranças violentas.
A pólio e seus efeitos se entranharam de maneira definitiva em meu corpo, em minha mente e em meu destino. Desde menino, sou tragado pelos limites que o mundo me impõe com a falta de acessibilidade e com a exclusão. Desde menino, esgarço os meus limites para caber onde permitem.
A destruidora doença, que tem poder de matar rapidamente ou de sequelar de maneira aterradora e permanente, também ronda perigosamente o Brasil, que míngua ano após ano a cobertura vacinal capaz de proteger de maneira definitiva o "serumano" ainda bebê.
Não imunizar uma criança hoje, inadvertidamente, é flertar de maneira macabra com a irresponsabilidade de dar a alguém o sacrifício do ser incomum sem escolha, do amplo sofrimento evitável, de um traçar sempre vacilante e tenso da existência.
Minhas memórias dos primeiros anos convivendo com o ataque voraz do vírus da pólio envolvem ainda a angústia do acomodar-me continuamente com a migalha. Pouca atenção social, poucas chances de estar junto, pouco reconhecimento. Muito apenas o estranhamento, o dó, e uma intragável esperança de que você "volte a ser normal".
A realidade de pessoa com deficiência, de cadeirante, e a minha defesa incansável do valor do diverso não excluem de mim o compromisso de poupar gerações da tragédia de ser relegado pelas marcas que carrega, de ser reformado em seus ossos e em sua carne para que funcione minimamente.
Não há negociação com um vírus que dá todos os sinais de que não age mais sorrateiramente e se fortalece na negligência do adulto e na ignorância perversa do pensamento antivax que se coloca à frente do óbvio. O risco iminente à infância está traçado e cada um de nós temos responsabilidade de fazer submergir a sanidade e a proteção.
Como sobrevivente de um massacre viral —e social, governamental e humano em outras proporções— garanto que não vale a pena pagar para ver a volta da pólio e suas consequências perpétuas na história da humanidade.
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