Jairo Marques

Assim como você

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Jairo Marques

Um voo perdido e um coração de mãe partido

Nenhuma solução prática existe para quem tem origens nos confins e mora na cidade grande

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Ter a consciência plena e diuturnamente em carne viva de que, como diz uma pessoa amada, "sou fruto do esforço de uma mulher", me deixa sempre numa postura de aflição por estar em dívida com a minha mãe.

Numa conversa recente com minha velha, perguntei de onde ela tirou tanta força –física, mental, espiritual e financeira-- para dar conta de mim. "Eu não pensava em nada, meu filho. Eu só ia. Não tínhamos dinheiro, não tínhamos suporte de ninguém, mas eu precisava ir."

Até a adolescência, minha mãe me carregava no colo, limpava minha bunda, comprometia suas vontades, suas vaidades, o afeto e o cuidado aos meus irmãos e sua vida laboral por um único objetivo: tentar me consertar da melhor maneira possível daquilo que a paralisia infantil me estragou, algo como 70% do corpo e dos movimentos.

Imagem de um coração cor de rosa partido em um barbante
Às vezes a gente parte o coração da mãe - Unsplash

Deu tudo certo para mim. Depois de arrumado, fui sozinho para o mundo. Fiz uma carreira bonita, com todas as máculas de ter uma deficiência marcante, ajudei parir a neta única cheia de talentos para uma avó já bem cansada, fiz coisas que impactaram realidades. Até tomei água na caneca do Jô, o que foi tido como vencer na vida para muitas gerações.

Minha mãe pode me ver rodeado de aplausos e dar redenção às memórias de dias duros com o fatídico "nada foi em vão". Mas eu fui, ela ficou.

Minha mãe não fez viagens à Europa, não teve noites tórridas de amor num chalezinho, não viu seu nome em letreiros, não bomba nas redes sociais.

Um homem em uma cadeira de rodas, usando uma camisa de cor vinho segura um livro prestes a ser autografado. Ao lado dele, uma menina usando um vestido verde e arco na cabeça sorri, abraçando o homem. A menina é ladeada por uma senhora que usa vestido preto. No ambiente, há uma estantes com vários livros
O colunista Jairo Marques com a filha, Elis, e a mãe, Marli, no lançamento do livro Crônicas para um Mundo Mais Diverso, do jornalista - Zanone Fraissat/Folhapress

Minha mãe perdeu bastante da mobilidade, do escutar com clareza, da visão sem turbidez. Soterrou em algum lugar que não acha mais muito daquele humor inabalável diante nossa pobreza do jeca e solidão.

Prometi vencer a distância, que com o meu próprio envelhecer fica cada vez mais larga, e vê-la no dia de seu aniversário último. O relógio não despertou, acordei atrasado demais e perdi o único voo viável para chegar lá nas Três Lagoas.

Fiquei em choque. Ainda na cama, liguei num choro de menino para ela. "Mãe, me perdoa. Perdi a hora, perdi o voo e não vou conseguir chegar". Mamãe me consolava com uma voz embargada e senti o meu imenso cordão umbilical fisgar.

Nenhuma solução prática existe para quem tem origens nos confins e mora na cidade grande. Não dava para remarcar a passagem, os aviões raleiam, e ir de marinete não me pertence às forças. Só sobrou aquele desgosto.

Por mais que ela tenha "entendido" a situação, algo em nós parece ter trincado. Eu nunca perco a hora, sou muito organizado por necessidade e fazia meses que eu programava um abraço. Fiquei mudo quando a moça que cuida da minha cabeça me ajudou a pensar: "talvez você não estivesse com muita vontade de ir."

Fico maltratado por dentro quando imagino que ela engoliu tantos desejos por mim e pode ter aventado alguma ingratidão minha. Palavra não enche barriga de saudade, ainda não consegui me redimir, mas amo minha mãe.

Queria ter visto minha velha empoderada, liberta, cobrando mais direitos para a mulher e não querendo texto de desculpas e floridos de Dia das Mães, mas tenho ela dentro de mim, em valores, em gana, em compromissos e em profundezas de ser. Talvez valha.

Para todas as mães gaúchas em aflição por seus filhos.

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