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Apanhadores de flores em Minas insistem em tradição apesar de prática sob risco

Atividade considerada Patrimônio Agrícola Mundial esbarra em restrição após criação de parque na Serra do Espinhaço

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Belo Horizonte

Comunidades tradicionais da Serra do Espinhaço, em Minas Gerais, mantêm tradição de coleta de sempre-vivas, planta vendida como flor ornamental.

Maria de Fátima Alves, 43, mais conhecida como Tatinha, participa da apanha de flores desde que tinha sete anos de idade, quando acompanhava os pais nas jornadas pela Serra do Espinhaço. "É uma atividade feita coletivamente, vão famílias inteiras, que andam distâncias longas para pegar as plantas", conta.

mulher apanha flores em campo
Grupos de moradores, a maioria mulheres, mantém tradição de apanhar flores sempre-vivas nativas em serra em Minas Gerais - Valda Nogueira

Antes dos pais, os avôs e bisavôs também seguiam o mesmo trajeto. O percurso é acompanhado por cantorias, rezas e refeições coletivas.

Depois de recolhidas, as sempre-vivas são secas e vendidas nos mercados de Diamantina e outras cidades do entorno, de onde saem para o comércio de decoração do Brasil e exterior.

As plantas são vendidas por R$ 12 a R$ 30 o quilo. A atividade remonta a mais de um século, após o declínio do garimpo de diamantes na região.

Única prática do Brasil reconhecida como "Patrimônio Agrícola Mundial pela FAO (Organização para a Alimentação e Agricultura) da ONU (Organização das Nações Unidas), a apanha das plantas está sob ameaça há 20 anos, desde a criação do Parque Nacional das Sempre-Vivas, em 2002.

A unidade é administrada pelo ICMBio (Instituto Chico Mendes de Preservação da Biodiversidade), órgão do Ministério do Meio Ambiente. A extração de plantas e caça de animais é proibida nessas unidades.

Instituído entre os municípios de Bocaiúva, Buenópolis, Diamantina e Olhos d’água, a unidade conta com vegetação de transição entre cerrado e caatinga, abriga a nascente do rio Jequitinhonha e é lar de espécies animais ameaçadas, como lobo-guará, onça parda e tamanduá-bandeira.

E também abriga as sempre-vivas, nome genérico para espécies da família das euriocauláceas, que conservam cor e aspecto muito tempo após serem colhidas.

"Até 2005, as comunidades foram sendo informadas da existência do parque. Depois, começou a violência contra os apanhadores de flores", relata Tatinha. Segundo ela, moradores passaram a ser ameaçados de prisão e receberam multas pela coleta de plantas no perímetro do parque.

Três mulheres com flores nas mãos em campo
Com o veto, apanhadoras passaram a buscar flores na área externa ao parque - Valda Nogueira

A solução foi passar a apanhar flores nas áreas externas do parque. Mas, por ser extenso, admitem que podem por vezes colher as plantas sem saber que estão no perímetro do parque.

A partir do veto, as comunidades, parte delas quilombolas, começaram a se articular para manter viva a tradição.

Em 2010, foi criada a Codecex (Comissão em Defesa dos Direitos das Comunidades Extrativistas), coordenada por Tatinha, que busca negociação para suspender multas e defender o direito ao uso dos recursos do parque.

Em 2020, a FAO concedeu aos apanhadores o título de Patrimônio Agrícola Mundial, dado a sistemas de produção que preservam modos de cultivo sustentáveis, como a agricultura andina no Peru e o cultivo milenar de arroz no Japão.

Em setembro deste ano, a Codecex lançou o documentário "Serra Nossa, Sempre Viva: protocolos de consulta das apanhadoras de flores", em parceria com a organização não-governamental Terra de Direitos. A produção narra a situação dos moradores após a chegada do parque.

O comércio das plantas decorativas tem impacto na economia da região. A venda de sempre-vivas movimentou, em média, US$ 1 milhão por ano, entre 1997 e 2018, na região, segundo levantamento publicado no livro "Vida e luta das comunidades apanhadoras de flores sempre-vivas em Minas Gerais", de 2021, pela Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri (UFVJM);

A proibição da coleta das flores inibiu o trabalho dessas pessoas, provocando migração após 2002, diz o professor Claudenir Fávero, um dos organizadores do livro. "Nós catalogamos 450 famílias em 21 comunidades no entorno do parque. De 2.500 pessoas, cerca de mil já não estavam vivendo com as famílias".

Desde 2015, as comunidades tentam transformar o parque em Reserva de Desenvolvimento Sustentável, em que é permitido o extrativismo dentro de regras que garantem a conservação do ambiente. "Nossa relação com a natureza é de cuidado e respeito mútuo. Assim como a gente tira nosso sustento da terra, a gente também protege essa terra que nos dá esse sustento", afirma Tatinha.

As demandas da comunidade de apanhadores de flores seguem sem solução. O pleito para mudança do parque para Reserva de Desenvolvimento Sustentável não avançou no ICMBio. Em 2017, o Ministério Público Federal recomendou ao órgão a assinatura de um termo de compromisso com os moradores da região do parque para dar segurança jurídica à prática de coleta de flores, que não foi assinado.

Diante da situação, as populações mantêm a agricultura de subsistência e buscam novas estratégias para se manterem no mercado. "Estamos usando as flores para fazer biojoias, buquês e arranjos. Tudo para agregar valor ao que conseguimos coletar", conta Tatinha.

Procurado, o ICMBio não se manifestou sobre a demanda dos grupos de que seja liberada a apanha das flores.

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