Ciência Fundamental

O que pensam os jovens cientistas no Brasil?

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Descrição de chapéu câncer

Como sabemos que o hábito de fumar causa câncer?

Podemos estabelecer uma relação causal sem experimentos que esbarram na ética?

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Marcel Ribeiro-Dantas

Os ensaios clínicos randomizados, RCT (do inglês Randomized Controlled Trial), entraram para o vocabulário de quem acompanhou as discussões sobre a Covid-19. Nesse experimento, os participantes são divididos em grupos de forma aleatória; um dos grupos recebe uma vacina ou um medicamento novo, por exemplo, e ao outro, conhecido como grupo controle, é oferecido algo de efeito conhecido, uma substância inerte ou o tratamento usual para aquela condição. Esses ensaios envolvem muitos participantes, são caros e complexos de realizar e monitorar. E muitas vezes esbarram em questões éticas.

Tais experimentos nos permitem diferenciar uma relação causal de uma associação estatística. Mas como realizar um ensaio clínico randomizado para tentar estabelecer uma relação causal entre o hábito de fumar e o câncer de pulmão? Teríamos de obrigar um dos grupos a fumar por anos, cientes do risco de estar fazendo mal a essas pessoas. E ainda precisaríamos acompanhá-las ao longo desses anos, para garantir que continuassem fumando, até o aparecimento dos tumores. Se até hoje não houve uma RCT para estabelecer essa relação, como é que desde meados da década de 1960 existe o consenso científico de que fumar causa câncer?

Arte ilustra uma mão segurando um cigarro que emana uma fumaça que chega a um grande pulmão. Uma pessoa de jaleco está de braços abertos em frente ao pulmão.
Ilustração: Julia Jabur - Instituto Serrapilheira

Antes de tudo, é importante entender outras hipóteses. Até o século 18, o câncer de pulmão nem era doença descrita; em meados de 1900 existiam apenas 140 casos documentados. Com o avanço tecnológico que possibilitou a produção e a comercialização em massa de cigarros, em 1950 esse câncer já era o tumor mais diagnosticado entre homens nos Estados Unidos. É razoável supor que antes ele fosse diagnosticado como outra doença, mas autópsias detalhadas na Alemanha são evidência de que não era uma doença comum.

Em 1900 o consumo per capita nos Estados Unidos era de 54 cigarros por ano e saltou para 4.345 em 1963, de acordo com Otis Brawley em um artigo de 2013. Embora correlação não implique causalidade, a explosão do consumo e de casos da doença chamou a atenção de vários cientistas. Levantaram-se hipóteses atribuindo a culpa à fumaça dos carros e da indústria, à pandemia de influenza de 1918 e até mesmo a um gene que teria efeito tanto sobre o hábito de fumar quanto de desenvolver a doença. Diversos nomes relevantes participaram dessa discussão, como o autor de "Como mentir com estatística", Darrell Huff, até o famoso estatístico sir Ronald Fischer.

Infelizmente ambos estavam do lado "errado" da história, já que minimizavam o papel do cigarro no desenvolvimento da doença. Como não era possível realizar uma RCT, e os métodos de inferência causal em dados observacionais não eram tão sofisticados como hoje (o prêmio de ciências econômicas em memória de Alfred Nobel de 2019 e 2021 homenageou pesquisadores nessa área), não era nada trivial resolver possíveis vieses de confusão que poderiam confundir as estimativas do efeito do cigarro no desenvolvimento do câncer de pulmão.

Experimentos naturais, dentre outros métodos de investigação, compõem uma grande área da literatura de causalidade chamada "inferência causal em dados observacionais" - por meio deles, tentam-se resolver os mesmos problemas postos às RCTs, ou até mais. Um desses métodos é a randomização mendeliana. Fumantes morrem mais cedo que não fumantes, mas existem outros hábitos mais comuns entre fumantes, como maior consumo de álcool e dietas menos saudáveis. Um modo de evitar fatores de confusão seria fazer uma RCT, mas, como vimos, não é prático nem ético. Dados observacionais, por sua vez, não garantem que nossas aferições serão precisas nem que não existam outros fatores de confusão.

Por outro lado, temos nossos genes desde que somos concebidos, e nossas escolhas e experiências ao longo da vida não o alteram. É como se nossa vida fosse parte de um experimento randomizado, já que ter uma versão de um gene não depende de outras questões que são problemáticas em experimentos convencionais.

Um exemplo dessas questões é que a maior parte dos participantes no grupo de intervenção de um experimento pode apresentar uma versão grave da doença, tendo sido o seu estado terminal a razão pela qual decidiram assumir o risco de tentar uma droga experimental, o que enviesaria os resultados do estudo. Esse tipo de coisa não deve acontecer quando atribuímos os participantes aos grupos do estudo de forma aleatória, e no caso da randomização mendeliana é o que acontece: não está em nosso poder ter escolhido nascer com uma versão tal de determinado gene.

Pensando nisso cientistas identificaram um gene conhecido como CHRNA5; fumantes que tinham certa versão desse gene tendiam a fumar menos do que quem apresentava uma outra variante. Ao agrupar pessoas de acordo com as versões do gene CHRNA5, quem tinha aquela associada ao hábito intenso de fumar tendia a morrer mais jovem, de doenças cardíacas ou câncer de pulmão. Uma das hipóteses sustentadas por Fischer no passado era que algum gene poderia encurtar a vida desses indivíduos, um gene responsável por outros eventos que não o hábito de fumar. Mas pesquisas com não fumantes que apresentavam a versão do gene associada ao hábito intenso de fumar revelaram que não havia diferenças quanto à expectativa de vida. Desse modo, a diminuição na longevidade devia ser devido ao hábito de fumar.

No entanto, estamos falando da década de 1960, quando a área de inferência causal e sequenciamento genético estava aquém do cenário atual. E aí, como eles chegaram a essa conclusão? Foi um somatório de estratégias. Estudos populacionais acompanhando pessoas parecidas cuja única diferença substancial era se elas fumavam ou não apontavam para um risco relativo maior de morte por câncer de pulmão entre os fumantes. Experimentos em animais-modelos, como coelhos e camundongos, revelaram resultados semelhantes. Análises de sensitividade, que buscam avaliar a razoabilidade de hipóteses alternativas, sugeriam que outras hipóteses não eram plausíveis dada a magnitude da doença. Patologistas também observaram que a fumaça do cigarro causava danos em células das vias aéreas e em regiões onde os tumores costumavam surgir. Outros cientistas descobriram que produtos químicos com hidrocarbonetos aromáticos policíclicos, que já eram conhecidos por serem carcinogênicos, constavam dos cigarros.

Esse acúmulo de evidências, e a dimensão que o câncer de pulmão tomou, contribuíram para se formar um consenso, que só ficou mais forte com as evidências mais robustas que surgiram ao longo dos anos. É evidente que nesse percurso revisões sistemáticas e meta-análises foram realizadas, dando solidez aos estudos efetuados naquele período. Além disso, políticas públicas buscando combater o tabagismo, baseadas na hipótese que a ciência apontava, trouxeram resultados favoráveis, endossando ainda mais a hipótese que hoje é consensual.

Fenômenos complexos tendem a ser controversos em algum momento. Com o tempo, no entanto, esforços de áreas diferentes da ciência tendem a se complementar, permitindo uma compreensão razoável e nos guiando para tomar decisões em direção a uma sociedade melhor.

*

Marcel Ribeiro-Dantas é pesquisador no Institut Curie, parte da PSL Research University e doutorando na Universidade Sorbonne, onde pesquisa inferência causal em dados observacionais da área de saúde.

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Erramos: o texto foi alterado

  O nome do estatístico citado é Ronald Fischer, e não Richard Fischer.

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