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Descrição de chapéu machismo

Os prejuízos de excluir mulheres de ensaios clínicos

Grande parte dos medicamentos em uso hoje foi testada apenas em homens

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Rossana Soletti

A aspirina foi um dos primeiros medicamentos produzidos em laboratório e amplamente comercializados, ainda no final do século 19. Desde então, foram realizados milhares de testes que avaliaram sua eficácia para diferentes condições de saúde, como na prevenção do infarto. Só recentemente, porém, demonstrou-se que esse efeito não é o mesmo para homens e mulheres: entre elas, não houve redução no risco de sofrer um ataque cardíaco. A aspirina é apenas um dos muitos medicamentos utilizados há décadas e que não foram testados em mulheres em particular.

Tal negligência é agravada porque, a partir da puberdade, a prevalência de uso de medicamentos é maior entre o sexo feminino. Além disso, elas também apresentam cerca de duas vezes mais reações adversas às medicações do que os homens.

Arte ilustra uma mulher e um homem de perfil; em primeiro plano há um meio círculo com bolinhas caindo que remetem a comprimidos
Ilustração: Clarice Wenzel - Instituto Serrapilheira

Para que um medicamento seja aprovado e comercializado, são necessários anos de pesquisa experimental, com testes em células e em animais, seguidos de estudos clínicos que avaliam sua segurança e eficácia em seres humanos. Grande parte dos medicamentos em uso hoje foram aprovados a partir de investigações feitas exclusiva ou majoritariamente em animais machos e em homens, e os resultados acabaram sendo extrapolados para ambos os sexos. Porém, a forma e a velocidade com que um fármaco é absorvido, metabolizado, distribuído e eliminado pode diferir entre os sexos, devido a fatores genéticos, fisiológicos e hormonais.

Uma análise de milhares de pesquisas mostrou que existem diferenças nas doses adequadas para homens e mulheres em 86 medicamentos aprovados pelo FDA, a agência regulatória dos Estados Unidos. Em alguns estudos que incluíram mulheres, as doses utilizadas foram as mesmas administradas aos homens, mas verificou-se que a concentração dos fármacos no sangue foi maior para elas, bem como o tempo para o medicamento ser eliminado, deixando-as mais propensas a reações adversas. Reforçando esses dados, de dez medicamentos retirados do mercado nos Estados Unidos entre 1997 e 2001, oito representavam maior risco para as mulheres. Assim, administrar uma mesma terapia com uma dose padrão pode, em muitos casos, ser desaconselhável.

As mulheres foram excluídas ou sub-representadas nos ensaios clínicos durante décadas, com consequências históricas e prejuízos que ainda persistem. A talidomida, lançada por um laboratório alemão em 1956, tinha diversas indicações — podia atuar como sonífero, calmante e antiemético, ou seja, para controlar vômitos. Vendida sem prescrição médica e propagandeada como "sem riscos", acabou sendo adotada por gestantes, para aliviar os enjoos típicos. Naquela época, as regulamentações sobre a aprovação de um medicamento eram bem menos rigorosas que as atuais, e os testes de toxicidade dessa nova medicação visaram apenas descobrir a dose letal em camundongos. A talidomida logo se tornou muito popular em 49 países, mas só depois de cinco anos se provou que ela provocava malformações fetais. Cerca de 10 mil bebês foram afetados, e metade não sobreviveu.

A tragédia desencadeou legislações muito mais rígidas para a aprovação de medicamentos em todo o mundo. Em 1977, o FDA baniu mulheres em idade reprodutiva da participação em ensaios clínicos, na tentativa de proteger eventuais fetos de possíveis efeitos adversos de novos fármacos. Somente em 1993 esta regra foi abolida, considerando a necessidade de estudos prévios em animais que avaliassem os efeitos no desenvolvimento dos fetos e esclarecendo às mulheres os possíveis riscos dos ensaios clínicos e a necessidade de contracepção. Embora a participação de mulheres em ensaios clínicos e até mesmo o uso de roedores fêmeas em testes experimentais tenha aumentado nos últimos anos, o cenário ainda é desigual: elas seguem sub-representadas em estudos de diversas áreas médicas, e algumas pesquisas não analisam os dados por sexo.

Tanta discrepância acarreta erros nos tratamentos, riscos elevados de efeitos adversos e até mesmo uma espera maior por diagnósticos, já que muitos sintomas foram estudados sobretudo em homens. Para proteger a saúde das mulheres, as especificidades delas não podem ser negligenciadas. Elas devem ser incluídas nos estudos clínicos desde o início, e as diferentes respostas entre os sexos precisam ser levadas em consideração.

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Rossana Soletti é farmacêutica e professora da Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

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