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Como montei a maior coleção de cérebros de golfinhos da América Latina

O relato de uma experiência bem-sucedida de trabalho coletivo na ciência

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Kamilla Souza

Você já deve ter ouvido falar das grandes coleções de cérebros humanos que existem ao redor do globo. Aqui no Brasil somos mais modestos, mas desde maio desse ano abrigamos a maior coleção de cérebros de golfinhos da América Latina, quiçá do mundo. Ela está armazenada no Instituto de Física da UFRJ, no laboratório de pesquisa interdisciplinar em neurociências, o metaBIO, onde sou pesquisadora.

Nas últimas décadas, a comunidade científica tem voltado sua atenção para o cérebro dos golfinhos, de tamanho avantajado e alto índice de convoluções corticais – as dobras do órgão. Pesquisas na área nos permitem compreender melhor não só esse grupo de mamíferos, mas outros (seres humanos inclusive), por meio de estudos comparativos.

arte ilustra uma picabe azul na estrada com diversos cérebros na caçamba, margenado uma praia onde nada um golfinho
Ilustração: Julia Jabur - Instituto Serrapilheira

Golfinhos podem alcançar em torno de dez metros de comprimento, percorrem os quatro oceanos do planeta e passam a maior parte de suas vidas submersos. Como estudá-los? Trata-se de um material raro, de difícil coleta. Entre nós a tarefa é ainda mais desafiadora devido à falta de financiamento, planejamento logístico e especialistas em neuroanatomia de mamíferos aquáticos. Isso significa que, apesar de nossa grande diversidade de espécies, muitas delas nunca tiveram seus cérebros estudados.

Ao elaborar meu projeto de doutorado, com foco em descrições morfológicas de cérebros de golfinhos, enfrentei o desafio de iniciar uma linha de pesquisa que partia do zero. E que pretendia ser 100% brasileira. Eu precisava dominar todas as etapas do processo, da dissecção à análise, e para tanto passei um período como pesquisadora visitante na Universidade de Hokkaido, no Japão, aprendendo com especialistas na área. Uma vez garantida a expertise necessária, faltava o material.

Nesse momento surgiu a ideia de criar uma rede dedicada à coleta e análise de cérebros de cetáceos no Brasil, e então passei a mobilizar pesquisadores de todo o país. A cada visita feita a um colaborador, novas portas se abriam e nossos vínculos eram fortalecidos, o que foi essencial para consolidar essa rede. Depois do primeiro contato, visitei cada instituição a fim de alinhar expectativas e entender as condições gerais de infraestrutura de coleta. Estabelecemos protocolos claros para extração, fixação e envio dos cérebros.

O processo funciona assim: quando um encalhe é notificado em alguma praia ou rio, as equipes técnicas se deslocam para resgatar o animal, que pode estar vivo ou morto. Em caso de morte, a necrópsia é feita no centro de pesquisa habilitado mais próximo. É nessa etapa que eu entro. Os colaboradores (se necessário, com minha ajuda) realizam a extração do cérebro e o acondicionam para enviá-lo a mim. De posse do material, sigo para a USP, onde está a máquina de ressonância magnética de ultra-alta resolução que comporta animais grandes – a única da América Latina –, e damos início às análises morfológicas.

As notificações de encalhe também podem ser feitas por moradores de comunidades costeiras, pescadores, banhistas ou qualquer indivíduo engajado. Assim, diversas instituições fazem campanhas para conscientizar a população a como proceder nesses casos, distribuindo folhetos com telefones de contato para garantir um resgate rápido e adequado. Às vezes veículos de mídia comparecem ao local e ajudam na conscientização das pessoas, destacando a importância do trabalho realizado e esclarecendo o que é feito com o animal após sua morte.

Não é sempre que isso acontece no meio acadêmico, mas nesse caso a coletividade venceu e foi fundamental nessa jornada, tanto que hoje temos 50 cérebros coletados entre 2019 e 2022 por meio de uma rede composta de 14 instituições colaboradoras, e que vem crescendo. São números que superam qualquer expectativa, sobretudo se levarmos em conta o contexto da pandemia que enfrentamos.

Claro que, diante da missão inusitada de coletar cérebros de golfinhos pelo país, vivi algumas experiências únicas. Uma vez saí do Rio de Janeiro e fui a São Paulo dirigindo sozinha uma picape com a caçamba cheia de cérebros. E foram inúmeras as ocasiões em que passei por inspeções em aeroportos ao transportar esses órgãos na bagagem.

Graças à rede de colaboração - que pretendo batizar de "Rede Brasileira de Neurobiodiversidade", sugestão do meu colega Kleber Neves -, conseguimos trazer ao Brasil o estado da arte em neuroanatomia comparada. Por meio de imagens de alta resolução, agora estamos produzindo descrições anatômicas de espécies comuns em águas brasileiras, mas nunca detalhadamente estudadas, como o boto-cinza, típico da baía de Guanabara.

O sucesso do projeto tem nos permitido ir muito além do planejado, gerando dados para outras espécies raras e endêmicas, como os peixes-boi amazônicos. Além disso, no último ano a pesquisa despertou o interesse do renomado Wellcome Centre Integrative Neuroimaging, um programa de especialização em neuroimagem da Universidade de Oxford, no Reino Unido. Concorrendo com estudantes de todo o sul global, fui selecionada para uma bolsa de estudo de um ano, em formato remoto. A especialização dedica-se aos estudos em cérebros de humanos, porém o trabalho de imageamento com golfinhos chamou a atenção do instituto. A experiência tem sido enriquecedora e tenho aprendido diversas técnicas que já estão sendo aplicadas ao meu material.

Para além dos aspectos técnicos, a rede me permitiu ministrar cursos e palestras, compartilhando o conhecimento adquirido e engajando cada vez mais novos cientistas. É impossível fazer ciência sozinho. Trabalhar de forma individual nos limita como investigadores. No meu caso, teria impedido minha pesquisa de ser o que ela é.

Nossa crescente coleção de cérebros de mamíferos aquáticos permitirá expandir o conhecimento de diversas espécies para os mais variados ramos da neurociência. Aqui, trago o relato de uma realização não só minha, mas de todo um grupo apaixonado por ciência e por pensar fora da caixa.

*

Kamilla Souza é bióloga e pesquisadora do Instituto de Física da Universidade Federal do Rio de Janeiro.

O blog Ciência Fundamental é editado pelo Serrapilheira, um instituto privado, sem fins lucrativos, que promove a ciência no Brasil. Inscreva-se na newsletter do Serrapilheira para acompanhar as novidades do instituto e do blog.

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