Thaís Nicoleti

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Uma gramática flexível

Gramática de linguistas inova, mas não abandona tradição

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A Rua da Língua, no Museu da Língua Portuguesa, em São Paulo - Eduardo Knapp/Folhapress

Vêm de longe as críticas da linguística ao modelo da gramática tradicional, sendo as mais recentes as que buscam tratar tópicos que eram considerados erros gramaticais ou desvios da norma como características de um português brasileiro ou mesmo de uma "língua brasileira". A discussão sai dos bancos acadêmicos e chega à imprensa ou mesmo às redes sociais bastante simplificada e surge uma espécie de consenso de que não há nada que corrigir em língua, desde que se possa entender o que foi dito ou escrito. Essa é a opinião considerada progressista.

Para discutir na mesa de bar, basta um posicionamento capaz de indicar, mais ou menos, se o sujeito é progressista, bolsonarista de carteirinha ou se pertence aos 30% de indecisos. Quando se vai um pouco mais a fundo, o que é necessário a quem escreve profissionalmente, a quem ensina língua portuguesa ou a quem trabalha com revisão de textos, por exemplo, as questões ficam mais complexas.

Muitos profissionais recorrem às gramáticas tradicionais, que são obras fáceis de consultar e geralmente oferecem respostas objetivas. Também há os que se socorrem do Google, que, como um bom supermercado de ideias, oferece dicas de todos os tipos para todos os gostos, às vezes baseadas em algum estudo, outras vezes fruto de um achismo inconsequente.

Entre uma coisa e outra, surgiu nas livrarias a "Gramática do Português Brasileiro Escrito" (Parábola, 2023), de Carlos Alberto Faraco e Francisco Eduardo Vieira, que se insere nessa visão progressista e tenta oferecer uma alternativa às gramáticas tradicionais. Os autores tomam como base para o estabelecimento das regras "o domínio acadêmico e o jornalístico", que consideram ser "instâncias bastante representativas da norma-padrão brasileira hoje". Trocando em miúdos, o que se escreve na imprensa e nas universidades constitui o padrão culto brasileiro.

As gramáticas tradicionais tomam como padrão a literatura, os outrora chamados "bons autores", aqueles que constituíam o cânone (aliás, a origem da gramática, na Grécia, está ligada à produção literária). As coisas mudaram, porém. A considerar o último Enem, a literatura brasileira anterior a Machado de Assis e a portuguesa como um todo já perderam o lugar no currículo do ensino médio brasileiro, e, ao mesmo tempo, a linguística se debruça sobre a língua "viva", ou seja, o registro oral.

Por outro lado, graças às redes sociais e à popularização dos aplicativos de mensagens, escreve-se muito o tempo todo, mas, como nos lembram Faraco e Vieira, "nem todas as manifestações escritas são de caráter formal". Daí a seleção do registro standard produzido pela grande imprensa e pelos universitários como base para a depreensão de regras. É bom lembrar que as regras gramaticais expressam comportamentos linguísticos regulares. Simples assim.

Os autores trabalham bem com a legitimação da colocação pronominal brasileira, em geral tendente à próclise. Estão liberados até os pronomes átonos no início do período, mas a ousadia não vai muito longe. Logo se apresenta uma restrição: desde que não sejam os pronomes "o", "a", "os" e "as", "em razão de sua fraqueza fonética decorrente da ausência de consoantes". Então, na prática, podemos dizer "Se cansou daquela vida", mas não "O fez feliz".

A incorporação de regências populares no panteão normativo, sempre como opções, facilita muito a vida do leitor, que vê abonadas as construções do dia a dia (ir no cinema, assistir o filme etc.). Não ganharam acolhida, porém, construções como "agradecer fulano (em vez de "a fulano") por alguma coisa" ou "isso a permitiu sair da depressão" ("a" no lugar de "lhe"), muito comuns na imprensa e no meio acadêmico. Os casos são omitidos, o que não deixa de ser uma forma de condená-los, ainda que implicitamente.

Na hora de arbitrar sobre o uso do pronome do caso reto em posição de objeto direto ("A jovem [...] embarcou em um ônibus, que deixou ela e outros candidatos próximos à universidade"), cada vez mais comum, os autores puxam o freio de mão e dizem o mesmo que a gramática tradicional.

Nada de "ajudou ele", embora façam uma concessão: "em contextos informais, pode-se até falar ou escrever ‘que ajudou ele’, ao invés de ‘que o ajudou’". Em seguida, advertem, a título de explicação, de que, "na escrita formal, os pronomes ‘ele’ e ‘o’ se equivalem apenas semanticamente, mas não sintaticamente". Muitos linguistas, no entanto, criticam os gramáticos tradicionais que usam o argumento da formalidade para, segundo eles, justificar a "manutenção da tradição do século 19", visto como uma forma de tentar encobrir uma visão elitista e conservadora de língua.

Bem, pronome do caso reto em posição de objeto direto não é "formal", a menos que se estejam a considerar construções como "deixa eu ver", "mandou ele sair", "ouviu ela entrar" etc., nas quais a gramática tradicional recomenda o uso dos pronomes átonos de objeto direto (deixa-me ver, mandou-o sair, ouviu-a entrar).

De fato, na imprensa, esse uso é comum ("Também em depoimento, seu motorista afirmou que viu ele fazer uma videochamada para um homem jovem e dizer que o amava, em inglês"; "Na festa, o CEO, Gleidson Soares, ao lado do cantor, ouviu ele dizer que pretendia ser dono da companhia"), embora se alterne com o da tradição (o tradicional "não me faça rir" parece mais frequente que um improvável "não faça eu rir", mas, segundo o novo cânone, a escolha fica ao gosto do freguês).

Para os autores, as duas construções são igualmente formais e a recomendação do uso do pronome átono vem de uma "tradição gramatical purista", "sem efetivo respaldo científico". Em seguida, explicam que o pronome do caso reto é correto por ser o sujeito do infinitivo (mandou ele sair) e que o pronome átono também é correto porque faz parte do objeto direto de "mandar" (mandou-o sair). A norma-padrão brasileira, portanto, admitiria as duas construções.

Esse caso, em particular, é o dos auxiliares causativos e sensitivos, meia dúzia de verbos que, até ontem, tinham comportamento específico. A recomendação da tradição é baseada na gramática latina, da qual herdamos essa estrutura sintática: a oração com função de objeto direto tinha (em latim) todos os elementos declinados no caso acusativo (grosso modo, o acusativo equivale ao objeto direto) e, exatamente por isso, o sujeito do infinitivo era um "sujeito no caso acusativo", ou seja, expresso pelo pronome de objeto direto. Mas deixemos isso lá para os portugueses.

Diante de estruturas do tipo "estimulou ele a fazer" ou "estimulou-o a fazer", "ajudou ela a entrar" ou "ajudou-a a entrar", os autores são taxativos: usa-se o pronome de objeto direto, agora sem "opções". Aqui não se trata mais de sujeito acusativo, estando os pronomes em posição de objeto direto. Em suma, se "ajudou ele" não é formal, "ajudou ele a fazer" também não o é, mas, depois de liberar o "mandou ele fazer", o leitor menos experiente pode sair dessa meio confuso.

A empreitada dos autores é digna de toda a admiração pelo esforço de legitimar o uso contemporâneo, sempre escorregadio, numa obra de referência, mas é fato que fizeram escolhas, como, de resto, todos fazemos. Nem tudo o que está na imprensa e possivelmente nos trabalhos acadêmicos, cada vez mais informais, foi aceito.

A defesa do "cujo", um pronome tão pouco popular, embora apareça envolta em justificativas, nada deve às gramáticas tradicionais: "pode até parecer sofisticação sintática, mas o uso adequado do pronome ‘cujo’ e de suas flexões consegue acrescentar, de modo econômico e coesivo, informações importantes ao texto, além de promover clareza e elegância à escrita".

Intelectuais que acreditam que a língua do Brasil já não seria o português tomam como normal uma construção como "a geladeira que a porta está quebrada". Justo. Quem nunca ouviu isso nestas paragens? É preciso, no entanto, decidir se "a geladeira que a porta está quebrada" é língua brasileira ou é informalidade (considerando haver distinção formal/informal na visão dita progressista). A afirmação de que o "cujo" dá "elegância" à frase (a geladeira cuja porta está quebrada) parece saída de uma gramática tradicional, não de uma obra científica. Nada contra, a propósito, mesmo sendo o "cujo" uma alcunha do diabo.

Na parte de concordância, uma das mais delicadas do ponto de vista da percepção de "erro", quase tudo é opção. O paralelismo sintático, por sua vez, geralmente omitido das gramáticas tradicionais, ganha um capítulo na obra, o que é uma ótima notícia. Para quem estudou pela tradição, porém, ainda é um pouco estranho o tratamento do predicativo do sujeito como "complemento do verbo ser", mas os autores apostam no que consideram uma forma mais simples de descrever a gramática da nossa língua.

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