Ciência Fundamental

O que pensam os jovens cientistas no Brasil?

Ciência Fundamental - Ciência Fundamental
Ciência Fundamental
Descrição de chapéu mudança climática

Uma expedição científica para conhecer a memória do oceano

Participei de um cruzeiro rumo ao passado para entender o futuro do clima

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Vinícius Ribau Mendes

Nas geociências, assim como na história, conhecer o passado é fundamental para entender o presente e projetar o futuro. Por mais que não seja possível voltar no tempo fisicamente, existem lugares que podem nos dar informações valiosas sobre a trajetória do planeta e, de alguma forma, nos abrem uma porta para conhecer aquele momento até então inatingível. Um desses lugares é o oceano.

Os arquivos geológicos que eles guardam funcionam como a memória da Terra. São o diário em que nosso planeta deixa anotações, lembranças em forma de rochas e sedimentos que nos permitem recuperar diversos tipos de informações. Para além da fauna e da flora, é possível acionar memórias sobre variações da composição e temperatura tanto da atmosfera quanto do oceano, e também avaliar mudanças no regime de chuvas e nos padrões de biodiversidade ao longo dos anos. Na climatologia, estudar o passado é fundamental para compreender os padrões de funcionamento do clima e criar cenários de projeções para o futuro.

arte ilustra um navio em uma superfície aquática margeada por plantas
Ilustração: Clarice Wenzel - Instituto Serrapilheira

O fundo do oceano é um registro precioso, mas de difícil acesso para estudar o clima do passado (conhecemos melhor a superfície da Lua). Em grandes profundidades (mais de mil metros) normalmente não existe erosão, e por isso no decurso do tempo se acumulam materiais com informações de sua época, acessíveis por meio de um tubo — que os cientistas chamam de testemunhos —cravado no leito do oceano.

Para a obtenção de testemunhos marinhos, desde a década de 1960 vem sendo realizado um esforço conjunto e internacional comparável à construção da estação espacial. Foi nesse ambiente de cooperação científica que se realizou o cruzeiro do projeto Amaryllis-Amagas — a bordo do Marion Dufresne, o maior navio científico da França e um dos maiores do mundo —, fruto da união de instituições e cientistas do Brasil e da França, do qual participei.

Ao longo de 21 dias, liderados por um coordenador brasileiro, Cristiano Mazur Chiessi, e uma coordenadora francesa, Aline Govin, navegamos pela costa da Guiana Francesa e do nordeste brasileiro, em locais sob a influência dos rios Amazonas e Parnaíba. Os sedimentos ali depositados possibilitam recuperar informações tanto sobre o oceano quanto sobre o continente. Coletamos testemunhos que, somados, chegam a quase meio quilômetro de extensão.

"Esse material vai permitir reconstruir variações do oceano, do clima e da vegetação dessa região tão importante", me disse Chiessi, da Universidade de São Paulo. E acrescentou que a Amazônia e o oceano são cruciais para a regulação do clima global (pense que, mesmo que você esteja no interior do Brasil, a maior parte da água da chuva que cai na sua casa é água que evaporou da superfície do oceano). Conhecer seus padrões de funcionamento é decisivo para entender os futuros efeitos das mudanças climáticas que já estão em curso.

No oceano Atlântico, existe um conjunto de correntes — uma das circulações de massa de água mais expressivas do mundo — que transportam calor da região tropical para aquela próxima ao polo Norte. Como os ventos que sopram de oeste para leste levam parte do calor da superfície da água para o continente europeu, o inverno na Europa é menos rigoroso que no Canadá. Mas, na América do Sul, é o regime de chuvas que é controlado pela temperatura da superfície do oceano, e essa temperatura é controlada pela intensidade da circulação de água no Atlântico.

Coletar o material é só a primeira parte do trabalho. Chiessi diz que os testemunhos colhidos nessa missão franco-brasileira serão utilizados pelos próximos dez anos para produzir ciência de ponta. Algumas análises foram feitas ainda no navio. A equipe contava com cerca de 50 pesquisadores e pesquisadoras, entre professores, pós-doutorandos, alunos de doutorado, mestrado e até da graduação, que trabalhavam 24 horas por dia, em turnos de quatro horas.

Para além dos métodos tradicionais, esse embarque contou com uma novidade: um novo método e equipamento desenvolvido totalmente no Brasil. Essa inovação, criada pelo grupo de pesquisa do qual faço parte, permite acessar informações sobre mudanças nos regimes de chuva a partir da análise dos sedimentos que são trazidos pelos rios que desembocam no mar. Nosso método permite avaliar alterações em características dos grãos que compõem a areia e, com as variações que observamos nesses grãos, conseguimos inferir mudanças nos padrões de distribuição das chuvas sobre toda a bacia hidrográfica. Esse método é baseado na luminescência, que é a capacidade que alguns materiais possuem de emitir luz quando estimulados — e nosso equipamento é capaz de escanear essa propriedade ao longo do testemunho.

O equipamento, ainda em desenvolvimento, foi testado pela primeira vez durante o cruzeiro científico e recebeu ajustes ainda a bordo, com as ferramentas e recursos que tínhamos disponíveis. Precisei resolver problemas que estavam fora da minha especialidade, como programação. Para tanto, contava com a ajuda da base de comando em terra, que me passava atualizações por meio de uma internet bastante limitada. Me senti um astronauta.

Cada nova ferramenta como essa permite aos cientistas entender um pouco melhor o passado do clima. A cada nova descoberta, o quebra-cabeça do clima global se torna mais completo.

A expedição Amaryllis-Amagas é um marco para a ciência nacional. O Brasil está despontando como um importante ator no cenário do estudo da climatologia do passado, e esse cruzeiro liderado por um cientista brasileiro e uma cientista francesa é a demonstração que nossa ciência anda ao mesmo ritmo da ciência internacional.

*

Vinícius Ribau Mendes é geólogo e professor no Instituto do Mar da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

O blog Ciência Fundamental é editado pelo Serrapilheira, um instituto privado, sem fins lucrativos, que promove a ciência no Brasil. Inscreva-se na newsletter do Serrapilheira para acompanhar as novidades do instituto e do blog.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.