Ciência Fundamental

O que pensam os jovens cientistas no Brasil?

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A ciência da complexidade como chave da sustentabilidade

O pensamento de rede liga de forma inovadora a conservação e o uso dos recursos naturais

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Rafael L. G. Raimundo

Estudante de biologia no ano 2000, um dia eu cruzava a Unicamp rumo a uma reunião no Instituto de Filosofia e Ciências Humanas. Contrariado, pensava como um antropólogo poderia me ajudar na aplicação da ecologia teórica para a conservação da natureza. Prossegui com resignação e certa curiosidade. Afinal, quem me havia mandado ali fora Keith Brown Jr., um dos fundadores da ciência ecológica brasileira e meu professor à época. Ele sabia da minha visão sobre a falta de serventia das ciências humanas para as abordagens quantitativas em pesquisa ambiental que me interessavam. Também sabia que eu estava errado.

Ainda alheio à dimensão do caminho entre a biologia e as humanidades, cheguei à sala da reunião para, desavisadamente, encontrar outro nome lendário da ciência ambiental. O antropólogo Mauro Almeida cochilava em sua escrivaninha, mas abriu os olhos e se pôs a digitar quando entrei. Logo me encarou: "Você deve ser o rapaz da biologia que quer falar de evolução e conservação, não?".

arte ilustra cobras entrelaçadas numa grande rede
Ilustração: Julia Jabur - Instituto Serrapilheira

Uma década antes, Almeida e Brown Jr. haviam liderado o movimento científico que apoiou a criação da primeira reserva extrativista brasileira, no Alto Juruá acreano. Combinando ecologia, antropologia e ideias inovadoras sobre governança, fizeram história. A questão que os movia era: podem comunidades locais gerar dados sobre ecossistemas, produção e qualidade de vida para gerir recursos com autonomia? Essa pergunta, bem sabiam, cruzava as fronteiras da ciência.

A gestão com pesquisa participativa no Juruá era uma dentre as múltiplas respostas ao influente artigo do ecólogo norte-americano Garrett Hardin, "A tragédia dos comuns", publicado em 1968 na revista Science. Hardin havia delimitado um problema ainda atualíssimo: como evitar que indivíduos livres ajam de forma egoísta, maximizando lucros imediatos, destruindo recursos comuns e degradando suas condições de vida?

A norte-americana Elinor Ostrom, que recebeu o Nobel de Economia em 2009, superou a dicotomia radical entre privatização e controle estatal como possíveis soluções ao mostrar que o comportamento coletivo humano pode, sim, ser compatível com a conservação em condições de autogoverno. Podemos extrair princípios de boa governança coletiva de recursos a partir de diversos exemplos.

Mas as soluções propostas para a tragédia dos comuns ainda não consideravam adequadamente os processos ecológicos e evolutivos que geram e mantêm a biodiversidade. E a aceleração do Antropoceno – a época geológica moldada pela atividade humana – intensificava uma realidade de colapso ecossistêmico crescente. A tragédia seguia seu curso.

Estimulado por Mauro Almeida, me fixei no Juruá entre 2006 e 2009. Trabalhei em gestão e delineamento de políticas públicas voltadas à sustentabilidade. Entretanto, a interface entre ciência e governança ainda parecia fragmentada. Buscando mais integração, voltei para a universidade.

Em meu doutorado na USP, revisitei minha velha conhecida ecologia teórica, agora sob um olhar de redes complexas. Contrastando com o senso comum, a palavra "complexa" aqui não significa "complicada", mas descreve um sistema que não pode ser compreendido pela soma de seus componentes. A ciência da complexidade estuda as interações entre os componentes do sistema, como conexões entre bairros que formam a rede de mobilidade de uma metrópole, fluxos entre os setores de uma empresa ou interações entre as espécies de um ecossistema.

Na natureza, as redes ecológicas descrevem os múltiplos efeitos que as espécies geram ao interagir. Toda vez que um beija-flor visita uma flor, que uma lagarta consome uma folha ou que uma onça mata uma presa, haverá consequências diretas e indiretas para as populações de outras espécies na intrincada rede da vida. Ao desvendar a organização e as dinâmicas das interações, a ciência de redes desvenda cascatas ecológicas e outros processos que moldam o funcionamento de florestas, lagos ou recifes de coral.

Quando ingressei na UFPB como professor, publiquei um artigo sobre a aplicação de redes adaptativas para restauração ecológica na revista Trends in Ecology and Evolution. O conceito de rede adaptativa se refere às retroalimentações entre mudanças nas características dos componentes (nós) da rede e a estrutura das conexões entre esses componentes (topologia), as quais desencadeiam alterações de estado e comportamentos emergentes no sistema.

Por exemplo, se um predador de topo passa a predar um grande herbívoro ao qual antes ele não tinha acesso, pode desencadear uma cascata de efeitos ecossistêmicos, aliviando a pressão do herbívoro sobre as plantas e influenciando a produtividade primária. A maior disponibilidade de vegetais pode alavancar o crescimento das populações de outros animais que, eventualmente, servirão como novas opções de presas para predadores, gerando mais respostas comportamentais ou evolutivas e, finalmente, reconfigurando a rede de interações.

Modelos de redes adaptativas tratam matematicamente desse vai e vem de cascatas ecológicas que moldam os ecossistemas. Eles são úteis para tentar prever a propagação de efeitos da adição e remoção de espécies no contexto da restauração de ecossistemas. Por exemplo, a erradicação de uma espécie invasora pode gerar cascatas ecológicas ao alterar tamanhos populacionais, interações e características ecológicas das outras espécies.

Essas cascatas também podem surgir da reintrodução de espécies de animais que haviam sido extintas localmente e cumpriam funções ecológicas-chave — as chamadas "engenheiras do ecossistema" — como grandes felinos predadores de topo ou aves frugívoras dispersoras de sementes que faziam a biodiversidade vegetal fluir na paisagem.

Precisamos agora avançar rumo a empreendimentos que combinem modelos de redes adaptativas com experimentos de restauração ecológica em larga escala, criando uma via de mão dupla entre abordagens teóricas e empíricas para viabilizar uma "engenharia da biodiversidade". Ousar aplicar amplamente a ciência da complexidade é urgente para fazer frente ao colapso funcional dos ecossistemas que testemunhamos de forma generalizada.

Meu próximo passo nessa interface entre ambiente e sociedade será usar modelos de redes adaptativas para entender como mudanças simples na organização socioprodutiva podem se propagar como catalisadoras de sustentabilidade ao reconstruir a biodiversidade e a funcionalidade dos ecossistemas e, ao mesmo tempo, gerar inclusão social e inovação econômica. Ou seja, sigo buscando respostas para a tragédia dos comuns que incluam a perspectiva da ecologia evolutiva para fazer frente aos desafios do Antropoceno.

*

Rafael L. G. Raimundo é professor do Departamento de Engenharia e Meio Ambiente e coordenador do Programa de Pós-Graduação em Ecologia e Monitoramento Ambiental da Universidade Federal da Paraíba – Campus IV.

O blog Ciência Fundamental é editado pelo Serrapilheira, um instituto privado, sem fins lucrativos, que promove a ciência no Brasil. Inscreva-se na newsletter do Serrapilheira para acompanhar as novidades do instituto e do blog.

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