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O sexo do cérebro

Diferenças sutis na anatomia cerebral levaram à criação de estereótipos que desfavorecem as mulheres

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Rossana Soletti

Em meados do século 19 alguns anatomistas estavam focados em desvendar supostas diferenças nos cérebros humanos conforme o sexo e a raça para justificar as distintas atribuições de papéis e posições sociais. Emil Huschke e Paul Broca realizaram medições de cérebros em autópsias e mostraram que o cérebro dos homens era ligeiramente maior que o das mulheres, discrepância logo associada à superioridade da inteligência masculina.

Segundo Broca, "as mulheres são, em média, um pouco menos inteligentes que os homens, diferença que não devemos exagerar, mas que no entanto é real. Podemos supor que o tamanho relativamente pequeno do cérebro feminino depende em parte de sua inferioridade física, em parte de sua inferioridade intelectual".

arte ilustra um rosto de perfil cuja cabeça está aberta e de dentro dela sai um cérebro. Em frente ao rosto há duas mulheres caminhando
Ilustração: Clarice Wenzel - Instituto Serrapilheira

Gustave Le Bon, estudioso francês interessado em psicologia e antropologia, foi além e concluiu que "nas raças mais inteligentes há um grande número de mulheres cujas dimensões do cérebro se aproximam mais às dos gorilas do que aos cérebros masculinos mais desenvolvidos. Essa inferioridade é tão óbvia que ninguém pode contestá-la sequer um momento. Todos os psicólogos que estudaram a inteligência das mulheres, assim como a dos poetas e romancistas, reconhecem hoje que elas representam as formas mais inferiores da evolução humana e que estão mais próximas de crianças e selvagens do que de um homem adulto e civilizado".

A ideia de que existia um cérebro humano superior, com dimensões e habilidades mais desenvolvidas, foi sustentada durante muito tempo com base em supostos "fatos científicos". Além da avaliação do tamanho do cérebro, pesquisadores comprometidos com a supremacia dos homens brancos europeus analisaram a capacidade volumétrica dos crânios, preenchendo-os com materiais como sementes ou chumbo, e depois pesando-os.

O cérebro das mulheres pesaria cerca de 150 gramas a menos do que o dos homens, o que foi considerado mais uma prova irrefutável de que a natureza teria gerado atributos e serventias diferentes para cada sexo. Paul Topinard, discípulo de Broca, assumiu que "o homem que luta pela existência, que é constantemente ativo no combate ao ambiente e aos rivais, precisa de mais cérebro do que a mulher, sedentária, cujo papel é criar filhos, amar e ser passiva".

Na ciência moderna, com acesso a exames de imagem e análises estatísticas, essa diferença de peso revelou-se insignificante. Há estudos que de fato dão certa vantagem ao tamanho do cérebro dos homens, ligeiramente maior, mas a diferença tende a desaparecer quando se considera a massa corporal.

Além disso, se tamanho fosse prova da inteligência, as baleias azuis, com um cérebro de dez quilos, seriam os seres com a maior capacidade cognitiva do planeta. Mesmo a análise da proporção entre o peso do cérebro e o do corpo não pode ser baliza para a imputação de maiores habilidades. A aversão à proposta de prever a inteligência com base na razão entre o peso corporal e o cerebral levou alguns pesquisadores a propor o divertido "paradoxo do chihuahua": se esse índice fosse verdadeiro, cães com cérebro e cabeça proporcionalmente maiores que o corpo seriam considerados mais espertos.

Embora existam sutis diferenças anatômicas e funcionais entre o cérebro de homens e mulheres, a espécie humana não apresenta um dimorfismo sexual tão significativo quanto o de alguns animais. Em espécies de pássaros em que apenas os machos cantam, por exemplo, a região cerebral responsável pela produção do canto é muito maior nos machos do que nas fêmeas. Quanto a nós, algumas doenças afetam os sistemas corporais de forma diferente entre os sexos — transtornos mentais podem ter maior ou menor incidência em homens e mulheres, como a depressão e a ansiedade, mais comuns entre elas, e o autismo e a dislexia, mais presente entre eles.

Desde o desenvolvimento fetal, o cérebro sofre a influência de hormônios sexuais, que possuem concentrações diferentes em meninos e meninas. Tal fato pode ativar determinadas regiões cerebrais de formas levemente distintas, mas isso não seria suficiente para determinar, por exemplo, que um sexo é muito hábil em resolver problemas de lógica, enquanto o outro tem facilidade em desenvolver atividades simultâneas. As vivências e experiências de aprendizagem ao longo dos anos vão moldando as conexões e as funções cerebrais, constituindo o que chamamos de plasticidade.

Em nosso meio, o sexo do nascimento determina como a pessoa será socializada. Associar supostas diferenças nos cérebros humanos à capacidade intelectual levou, durante muito tempo, à segregação de meninos e meninas em atividades escolares, ajudando a reforçar estereótipos de gênero. Sabemos que o sexo de um indivíduo não é um indicador viável para prever suas habilidades cognitivas, comportamentos e personalidade, que são moldados por fatores genéticos, ambientais, sociais e culturais. É preciso, portanto, combater os preconceitos firmados há décadas, mas que ainda interferem na construção da sociedade.

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Rossana Soletti é professora de ciências morfológicas e história da ciência na Universidade Federal do Rio Grande do Sul.

O blog Ciência Fundamental é editado pelo Serrapilheira, um instituto privado, sem fins lucrativos, que promove a ciência no Brasil. Inscreva-se na newsletter do Serrapilheira para acompanhar as novidades do instituto e do blog.

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