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Como buracos negros explicam engavetamentos de trânsito

A analogia científica que relaciona um fenômeno astronômico ao nosso cotidiano

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Maíra Vallejo Mariana Coutinho

Na Inglaterra de 1783, o filósofo naturalista John Michell se tornaria a primeira pessoa a propor a existência de corpos celestiais conhecidos hoje como "buracos negros", num artigo publicado na mais antiga revista científica do mundo, Philosophical Transactions of the Royal Society of London, fundada em 1665. Na época já considerado um grande cientista, ele imaginou que, assim como existiam estrelas visíveis no céu, poderia haver estrelas tão compactas e densas que suas gravidades chegariam a impedir o escape da luz.

arte ilustra duas pessoas de costas em um carro. pelo para-brisa, é possível ver um buraco negro
Ilustração: Clarice Wenzel - Instituto Serrapilheira

Michell foi um dos principais responsáveis por buscar entender o comportamento dessas "estrelas escuras", e mesmo que àquela época não existisse a tecnologia necessária para sua observação direta, postulou que o universo era repleto delas, hipótese que seria comprovada posteriormente pelos astrônomos.

Ao longo dos quase 250 anos transcorridos depois da publicação, muitos mistérios sobre o funcionamento desse corpo celeste já foram esclarecidos. No entanto, a visualização fotográfica, por exemplo, só foi viabilizada em abril de 2019, quando o projeto EHT (Event Horizon Telescope) conseguiu capturar a primeira imagem de um buraco negro.

Thiago Gonçalves, astrônomo e diretor do Observatório do Valongo/UFRJ, conta que as particularidades dos buracos negros ainda não são compreendidas em sua totalidade. "A imagem que foi produzida em 2019 e outros dados que foram observados nos ajudam a entender seu funcionamento, mas existem alguns detalhes que a física não compreende. Por exemplo, imagina-se que neles haja um ponto de densidade infinita, característica que a dinâmica não consegue explicar."

Por causa dessa dificuldade, a adoção de analogias é uma estratégia para construir associações entre fenômenos astronômicos e situações comuns do cotidiano. Em 2022, o físico George Matsas, junto à sua então aluna de mestrado do Instituto de Física Teórica (IFT) da Unesp, Luanna K. de Souza, propôs algo nessa linha, uma hipótese que associa os engavetamentos de trânsito aos buracos negros. No artigo "Black-hole analog in vehicular traffic", publicado no American Journal of Physics, os pesquisadores compararam a origem dos engavetamentos a uma característica particular dos buracos negros, utilizando métodos tradicionais da relatividade geral.

Imagine a seguinte situação: diferentes carros andam em linha reta por uma estrada, um atrás do outro. Os veículos então entram em uma região de neblina. Devido à baixa visibilidade, o primeiro motorista da fila é obrigado a diminuir a velocidade. Ao fazer isso, ele transmite a mensagem de redução de velocidade ao carro de trás, pois a luz do freio é acionada. A partir dessa informação, o carro de trás também reduz a velocidade e imediatamente aciona o freio, quando então o terceiro carro também recebe a mensagem. E assim essa desaceleração passa a ocorrer sucessivamente ao longo da fila de carros.

O cenário muda quando um dos veículos aciona a luz do freio depois de já ter adentrado a região de neblina, impedindo a propagação da informação para distâncias maiores, o que acaba por gerar o choque com o carro de trás. O tempo para o acionamento da luz de freio entre um carro e outro será cada vez menor, resultando no início de um engavetamento.

Assim como nos engavetamentos de carros, nos buracos negros há uma delimitação física que impede a evolução da mensagem, aspecto observado por meio do estudo da chamada "zona de não retorno da informação" — o horizonte de eventos, região em que a intensa gravidade gera uma curvatura infinita do espaço-tempo, impedindo a aplicação das leis convencionais da física. No tráfego, o atraso da propagação de luz é condicionado por uma região de neblina, enquanto no buraco negro o que existe é o chamado raio de Schwarzschild — conhecido como raio do buraco negro.

Esse raio funciona como uma espécie de "fronteira", ou limite geográfico, para a propagação de toda e qualquer matéria. Isso acontece porque, a partir do raio de Schwarschild, a força gravitacional é grande demais para que a velocidade de escape — menor velocidade necessária que um objeto precisa alcançar para conseguir "fugir" da atração gravitacional exercida por corpos celestes — consiga ser maior que a velocidade da luz. "Para um buraco negro parado, o raio de Schwarzschild é a distância até o horizonte de eventos", explica Gonçalves.

Ao longo da história da comunicação científica e filosófica, cientistas e divulgadores de ciência buscaram formas de traduzir conceitos abstratos. "Einstein, por exemplo, utilizava os experimentos mentais, os 'Gedankenexperiments', justamente para tentar compreender um problema ‘não experimentável’, complementa o astrônomo. "O objetivo é sempre tentar elaborar uma equação matemática que, a partir de um modelo que funciona, explique o que está sendo observado e que também preveja o comportamento futuro."

Gonçalves comenta a ideia proposta por Matsas e Souza. "A dinâmica do engavetamento de carros serve à perfeição para ilustrar a transmissão dentro de um buraco negro", diz. "O objetivo é fazer uma analogia de como o sinal se propaga. Se os carros estiverem muito próximos entre si, o sinal de frenagem não atinge o veículo de trás rápido o suficiente, então um carro vai bater atrás do outro. Assim como se você estivesse dentro do horizonte de eventos e mandasse, por exemplo, um sinal de rádio dizendo ‘socorro, estou preso’, essa mensagem não iria conseguir sair de dentro do buraco negro. A analogia está aí."

Paralelos como esse são uma manifestação da universalidade da física, afirma Gonçalves. "Ela é a mesma em todo o Universo. Você pode aplicar conhecimentos de áreas diferentes em situações aparentemente diferentes, mas que no final das contas representam como a física e o Universo funcionam."

Embora ainda não seja possível prever imediatamente como esse estudo poderá ser aplicado à vida cotidiana, analogias científicas estimulam a curiosidade sobre o funcionamento da natureza. A pesquisa básica, aquela que não é voltada a aplicações imediatas, é essencial para pavimentar o caminho para inovações futuras. O GPS, por exemplo, não existiria sem um profundo conhecimento fundamental sobre como funciona a relatividade. Alimentar a curiosidade científica pode, portanto, ter um papel essencial para a resolução de problemas cotidianos.

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Maíra Vallejo e Mariana Coutinho são alunas da Escola de Comunicação da UFRJ. Elas participaram de uma oficina de jornalismo científico promovida pelo Instituto Serrapilheira e pelo blog Ciência Fundamental para estudantes de jornalismo da universidade, em outubro de 2023. O texto da dupla foi selecionado na etapa final da oficina, que contemplava um exercício prático de sugestão de pauta e a produção de uma matéria para publicação no blog. O texto foi editado por Clarice Cudischevitch e Maria Emilia Bender, e checado por Nathália Afonso.

O blog Ciência Fundamental é editado pelo Serrapilheira, um instituto privado, sem fins lucrativos, que promove a ciência no Brasil. Inscreva-se na newsletter do Serrapilheira para acompanhar as novidades do instituto e do blog.

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