Darwin e Deus

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Darwin e Deus - Reinaldo José Lopes
Reinaldo José Lopes

HQ brasileira traça retrato visceral e lírico da gripe espanhola

'La Dansarina', de Lillo Parra e Jefferson Costa, mescla bem história e fantasia

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Não faz muito tempo, tive a sorte de ser convidado pela editora HarperCollins Brasil para escrever o prefácio de uma pequena obra-prima dos quadrinhos adultos brasileiros: "La Dansarina", de Lillo Parra e Jefferson Costa. A HQ conta um pouco do que foi a pandemia de gripe espanhola no Brasil de um jeito visceral, lírico e fantástico, pelos olhos de uma criança. É com muita alegria que compartilho o meu prefácio abaixo. E recomendo fortemente a leitura dos quadrinhos de Parra e Costa!

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A mão e o fogo: vidas paralelas de duas pandemias.

Tive a sorte de conviver com três de meus bisavós até o começo da adolescência. O mais velho e falante deles, o vô Chico, nasceu em 1900, o que significa que já era homem feito quando a gripe espanhola chegou ao Brasil. Entre as muitas histórias que gostava de contar diante do prato de macarronada com frango nos almoços de domingo, a pandemia de 1918 aparecia aqui e ali, aos pedaços, feito interlúdios de treva no pano de fundo de suas lembranças.

História em quadrinhos mostra a Morte na forma de uma mulher bonita conversando com um menino sobre a gripe espanhola
Trecho da HQ "La Dansarina", obra de ficção sobre a gripe espanhola no Brasil - Reprodução

Ele falava de parentes e amigos que tinham partido muito antes da hora, de enterros às pressas, do medo trazido pelos poucos trens que chegavam ao que era a nossa cidadezinha de então. Nessas conversas, o adjetivo "espanhola" adquiria uma ressonância peculiar – e familiar, no sentido literal da palavra: minha bisavó, a finada esposa do velho Chico, nascera na Espanha, perto de Saragoça. Quando pequeno, eu ficava me perguntando se havia algum tipo de relação sinistra entre as duas coisas.

Não me parece implausível que parte da tragédia da Covid-19 esteja ligada ao fato de que, para muita gente no Brasil e no mundo, esse tipo de conexão com a pandemia anterior, pessoal e histórica ao mesmo tempo, tinha desaparecido havia muito tempo quando a atual pandemia começou. Ao falar de um trauma parecido, a experiência de ter vivido duas guerras mundiais, o escritor inglês J.R.R. Tolkien (1892-1973) lamentou a fragilidade dos fios que nos ligam ao passado. "Tão curta é a memória humana, e tão evanescentes são nossas gerações, que dentro de apenas 30 anos haverá pouquíssimas pessoas com aquela experiência direta que é a única capaz de tocar o coração. A mão queimada é o melhor ensinamento sobre os perigos do fogo", escreveu ele.

Os últimos anos mostraram que nem a experiência de enfiar o dedão na fogueira é suficiente para algumas pessoas. Mesmo assim, uma das responsabilidades dos que atravessarem este período mais ou menos inteiros é fazer de tudo para que a cadeia das lembranças não se rompa. E, como o próprio Tolkien bem sabia, as histórias que contamos estão entre as maneiras mais eficazes de reforçar essa cadeia.
Nisso, como em tantos outros aspectos, La Dansarina é exemplar, ainda que a graphic novel que você tem em mãos seja muito mais do que uma lição de história e epidemiologia. Peço desculpas a Lillo Parra e Jefferson Costa por deixar de lado por alguns parágrafos o cerne da narrativa e me concentrar no que ela é capaz de nos contar sobre o que significa enfrentar uma pandemia.

Um dos elementos mais óbvios é a tendência demasiado humana de jogar a culpa num Outro com O maiúsculo – o indesejado, o perigo que veio de fora. Vimos isso com a gripe "espanhola" (embora os primeiros casos, como sabemos hoje, tenham surgido nos EUA), mas também com a xenofobia contra chineses e outros asiáticos que se espalhou pelo mundo a partir de 2020. Alguns ainda insistem em falar da "peste chinesa", sem se dar conta de que só acasos biogeográficos e pura sorte impedem que um vírus emergente oriundo da Amazônia se torne pandêmico – pelo menos por enquanto.

Seja em 1918, em 2020-2022 ou em qualquer outro momento histórico afetado por doenças novas e devastadoras, essas situações têm o potencial de revelar como o tecido civilizatório é potencialmente frágil. Sociedades complicadas como a nossa dependem da conexão e da confiança implícita entre seus membros. Quando esses elos se esgarçam e o Estado deixa de fazer seu trabalho, o resultado são cenas como a corrida desesperada atrás de cilindros de oxigênio em Manaus em 2021, ou os corpos armazenados em contêineres do século XXI e pátios de cortiços do começo do século XX.

Outra lição que já deveria ter ficado clara é a conexão entre o impacto das pandemias e a desigualdade. De um lado, é verdade que algumas doenças emergentes ganham status pandêmico por causa da vulnerabilidade da população como um todo a um novo inimigo microscópico. Como ninguém ainda desenvolveu imunidade natural contra elas, todo mundo está suscetível a ser infectado, ao menos no início. Mas doenças transmissíveis, em especial as que viajam pelo ar, como a gripe espanhola e a Covid-19, dependem da proximidade física entre os seres humanos para alcançar todo o seu potencial destrutivo. E é claro que é muito mais difícil minimizar essa proximidade, ou tomar outras medidas de higiene que retardam a transmissão, para quem precisa viver em cortiços ou favelas lotados de gente, onde nem o acesso à água corrente está garantido.

Nenhum desses desafios é simples de enfrentar, mas a história que você está prestes a ler também é uma história de solidariedade – entre gerações, entre grupos de pessoas diferentes, até mesmo entre os vivos e os mortos. Nesta e em qualquer outra pandemia do passado ou do futuro, esse é o único caminho, no fim das contas. Enquanto bilhões de pessoas continuarem sem acesso algum às vacinas da Covid-19, por exemplo, de nada adiantará que poucos privilegiados tomem a sexta, sétima ou oitava dose. Ninguém sai desse tipo de buraco sozinho. Boa leitura!

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