Um calcanhar-de-aquiles inegável do jornalismo científico no mundo todo, e em especial no Brasil, é a falta de uma cobertura mais intensa do que a gente pode designar, de forma genérica, como má conduta científica. É normal que nos ocupemos do cotidiano de descobertas e controvérsias intelectuais da ciência, mas isso às vezes impede que enxerguemos os conflitos de interesse, as ambiguidades éticas e, de vez em quando, as fraudes deslavadas que acontecem e que têm um impacto não só sobre a confiabilidade dos dados, mas também sobre a saúde pública. O podcast Ciência Suja preenche tremendamente bem essa lacuna, e é com prazer que o incluo na nossa série de resenhas de podcasts, que começou com o querido Torá com Fritas.

O Ciência Suja estreou em agosto de 2021, com um tema que me é muito caro (e que me faz passar raiva de um jeito particularmente próximo): a famigerada "pílula do câncer", a fosfoetanolamina, (mal) desenvolvida por um pesquisador da USP de São Carlos, Gilberto Chierice, que morreu em 2019. Ainda durante o governo Dilma, eu e meus colegas da Folha cobrimos o processo totalmente atabalhoado que levou à aprovação do uso da "fosfo", como é chamada, para pacientes brasileiros, empurrada por deputados oportunistas no Congresso Nacional. Testes clínicos acabariam comprovando que o suposto medicamento não tem efeito nenhum sobre o câncer.

Mas o uso inadequado da "fosfo" vem de muito antes, provavelmente desde a década de 1990, e o pessoal do Ciência Suja fez um excelente trabalho ao escarafunchar a pré-história da suposta panaceia e as implicações de deixar de lado o sistema de testes clínicos estabelecidos pelo método científico. Outro episódio exemplar é o que inaugura a segunda temporada, sobre o uso experimental da proxalutamida como suposta droga mágica contra a Covid-19 (spoiler: é inacreditável como os envolvidos ainda não foram parar na cadeia).

Saindo da seara da saúde pública, compreensivelmente a mais destacada pela série, outro excelente episódio aborda um dos temas caros ao blog, o chamado Design Inteligente ou "criacionismo 2.0" -- aliás, seus defensores também ajudaram a espalhar desinformação sobre a pandemia da Covid-19, em especial nos meios evangélicos brasileiros.

Além da riqueza informativa, várias coisas fazem com que o Ciência Suja seja muito gostoso de ouvir. Para começar, o casal de apresentadores Thaís Manarini e Theo Ruprecht não tem medo de carregar um pouco as tintas no sarcasmo nem de dar devidamente o nome aos bois quando estão falando de gente claramente sacana que distorce informações científicas e coloca a vida dos outros em risco. Cá entre nós, na situação atual, é um alívio ouvir vozes que não estão presas a um suposto ideal de isenção que acaba favorecendo gente sem escrúpulos.

Também é um frescor ouvir a variedade de sotaques e de maneiras de se expressar da equipe, sem o tom excessivamente ensaiado e "limpo" que ainda se vê em outras produções audiovisuais. O pessoal do Ciência Suja simplesmente soa como gente normal, com a cabeça no lugar, investigando a fundo absurdos que violam qualquer noção de bom senso.

Não por acaso, eles acabaram de ser escolhidos como melhor podcast no Prêmio Einstein +Admirados da imprensa de Saúde, Ciência e Bem-Estar. Que venham mais temporadas!