Quando a pandemia de Covid-19 forçou o planeta a ficar em casa, muita gente descobriu as delícias de fazer o pior pão do mundo, os horrores dos aplicativos de videoconferência numa casa cheia de crianças e as mil e uma utilidades do álcool em gel. Mas para a paulistana da zona leste Nathachi Silva, tudo isso somado à demissão do emprego de designer gráfica se traduziu numa revolução pessoal: juntando o máximo de pertences que podia enfiar nas mochilas de sua bicicleta, saiu Brasil afora para uma jornada solitária que começou no final de novembro de 2020 e já computou algo entre 3 mil e 4 mil quilômetros rodados.
O primeiro destino de sua viagem solo foi Joinville (SC), onde se hospedou na casa de uma amiga. Explorando a região, acabou seguindo para Urubici, onde começou a trocar o trabalho voluntário por pouso e comida em casas, pousadas e sítios do caminho.
"Eu sempre tinha querido fazer uma viagem assim, todo fim de semana já procurava conhecer lugares novos, mas com a pandemia e a demissão, porque eu não conseguia pedir demissão, né, como todo mundo que está preso ao dia a dia, resolvi que não queria ficar mais em São Paulo, naquela pressão", conta Nathachi. O primeiro destino foi o interior de São Paulo mas assim que a circulação ficou um pouco mais liberada seguiu para Santa Catarina.
"Fui de mudança para Joinville, eu não queria mais voltar para São Paulo, mas não fiquei nem um mês e já parti pensando que era para o Rio Grande do Sul, ou para o Uruguai, mas cheguei só até Urubici, me apaixonei, fiz várias paradas, voluntariados pelo caminho e explorei bastante", lembra.
O voluntariado, que desperta uma interminável polêmica entre os mochileiros do mundo —uns acusam a prática de ser uma versão bicho-grilo da velha escravidão, em que se troca trabalho por casa e comida, enquanto outros a consideram uma valiosa imersão na realidade de cada parada—, foi o meio de subsistência de Nahtachi nos últimos dois anos e meio.
"Eu via para onde queria ir, seguia para lá e encontrava pessoas que nunca tinham ouvido falar de voluntariado", explica Nathachi. "Eu via o que poderia oferecer para trabalhar na região, gosto de trabalhar com arte por ser designer, então oferecia pintar plaquinhas para sinalizar, decorar os lugares, e todos aceitaram, sempre deu certo".
Alimentar as redes sociais ao longo da jornada foi o melhor cartão de visitas de Nahtachi nessa jornada. "Eu chegava, conversava muito, porque chegando nesses lugares pequenos cheia de malas as pessoas vinham curiosas querer saber minha história, aí eu mostrava meu Instagram, e eles aceitavam que eu ficasse, diziam o que tinha para fazer", afirma.
A moça bonita de 32 anos, com seus olhos claros e preparo físico construído a cada pedalada e caminhada pelas trilhas do país, desperta naturalmente uma questão: como lidou com o esperado assédio rodando mundo sozinha à força de seus pedais?
"Nesse tempo todo, só tive um caso de assédio mais ostensivo, um dia que precisei pegar carona na serra do Rio do Rastro, em Santa Catarina, mas era o pai de uma seguidora, nunca imaginei que fosse correr risco", lembra. Felizmente sem maiores violências, ela chegou a pensar em desistir de seguir sozinha, mas repensou a questão, registrou um boletim de ocorrência contra o assediador e seguiu em frente. Ela chegou a comprar um spray de pimenta como medida de proteção extra, mas acabou desistindo de carregá-lo porque, explica, a deixa "mais ansiosa que preparada".
"Tem que ser otimista, tomar cuidados, claro, mas sem entrar na paranoia", avalia, recomendando a quem quiser começar uma jornada semelhante escolher lugares turísticos, onde o forasteiro não vai ser visto como um alienígena perigoso. "Eu já escolho lugares onde sei que não há histórico de violência, embora ela seja cultural", diz.
O problema maior que Nathachi quer resolver assim que for possível é o peso que precisa carregar por aí, que inclui barraca, panelas, fogareiro, saco de dormir, roupas de frio, de calor, e toda uma traquitana generosa que lhe dá autonomia —mas também uma que outra cãibra. "Quero equacionar isso, viajar mais leve", explica.
Conversando com o blog em São Paulo, Nathachi explica que os quase dois anos em que esteve fora já exigem uma revisão da bagagem. "Dois anos são o tempo limite para a maior parte das coisas, das roupas, daí você começa a ter que repor, até agora só comprava comida e produtos de higiene pessoal, mas agora precisa voltar a consumir, então comecei a fazer alguns trabalhos de design gráfico, porque é difícil viver só de voluntariado".
Difícil ou não, Nathachi não vê a hora de pegar a estrada de novo. "Vim para votar nas eleições, já fiquei para as festas de final de ano, mas na próxima semana espero estar voltando para o sul", suspira. Enquanto sua família fica com os cabelos em pé, daqui do blog só podemos desejar boa viagem!
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