Entretempos

Curadoria de obras e exposições daqui e dali, ensaios entre arte, literatura e afins

Entretempos - Cassiana Der Haroutiounian
Cassiana Der Haroutiounian
Descrição de chapéu Armênia

Fé no Inferno

Ensaio Palavra-Imagem com Santiago Nazarian

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colagem de fotos
Cicatrizes territoriais armênias - exclusivo entretempos - Ensaio Palavra-Imagem com Santiago Nazarian - Cassiana Der Haroutiounian

Nas resenhas sobre os livros do escritor e tradutor paulistano Santiago Nazarian, é comum encontrar a frase "é o melhor escritor da sua geração", acompanhada de palavras-chave como "l'enfant terrible", "literatura jovem", ou "pós-terror" a depender do livro e da época em questão. Nazarian rechaça todos eles não por pedantismo intelectual de quem se acha acima de rótulos, mas por ser de fato difícil entender onde ele está posicionado no espectro da literatura brasileira contemporânea. Aos 44 anos, o escritor tem em sua carreira títulos consagrados no mercado editorial brasileiro e estrangeiro como "A morte sem nome"(Planeta, 2004, com edição portuguesa e sérvia), "Mastigando Humanos"(Nova Fronteira, 2006, com edição espanhola e italiana), "Biofobia"(Record, 2014) e "Neve Negra" (Companhia das Letras, 2019). Com o ilustrador Rogério Coelho, Nazarian fez o infantil "A Festa do Dragão Morto" (Melhoramentos, 2019). Navegando entre o suspense e o fantástico, o romance e a autobiografia, Nazarian alcançou reconhecimento de seus leitores e da crítica, com diversas indicações a prêmios e láureas ao longo dos anos. Mas foi seu livro mais recente que o colocou em um espaço diferenciado entre os "escritores da sua geração". Fé no Inferno (Companhia das Letras, 2020) foi lançado bem no começo da pandemia e, por isso, não recebeu a atenção que merecia. Sem as habituais noites de autógrafos, com livrarias fechadas e uma avalanche de lives nos meses iniciais da pandemia, o livro de Nazarian ficou um pouco de lado, mesmo ele sendo um escritor consagrado. Azar do público, que só em 2021 teve mais contato com o melhor livro do escritor paulistano e um dos grandes romances lançados nos últimos anos. Pode parecer enviesado da minha parte, pois Santiago, como eu, é hay, descendente de armênios e o genocídio daquele povo é o pano de fundo da história, que roda em paralelo a São Paulo às vésperas de uma eleição presidencial que jogaria o Brasil também em uma experiência com traços genocidas. Mas este Ensaio Palavra-Imagem está aqui para mostrar a grandeza do texto de Nazarian, finalista dos prêmios mais importantes do Brasil com esse livro que trata de povos injustiçados, minorias oprimidas, sobrevivência e fé em algo. Algo esse que tem um quê de Borges, que por meio de um de seus personagens dizia "que o céu exista, ainda que nosso lugar seja o inferno". Como imagem, escolhi uma das minhas tantas idas e vindas à Armênia, que carrega um pouco de histórias vividas, acumuladas, escutadas e sentidas, de perto e de longe. Poderia ter escolhido alguma imagem de outra pessoa, mas esse livro me tomou tanto nos últimos dias que decidi manter esse Ensaio mais pessoal. Que seja. Duas imagens de uma série ainda em processo, com colagens territoriais. Montanhas do Cáucaso com territórios inventados de sangue.

colagem com imagem de montanhas armênias com terra vermelha
cicatrizes territoriais armênias - exclusivo entretempos - Ensaio Palavra-Imagem Santiago Nazarian - Cassiana Der Haroutiounian

PROCISSÃO FANTASMA

Perdido em devaneios, criando histórias para mim mesmo, seguindo em frente, vagando sem rumo, sem mais me preocupar com minha segurança, de repente eu me encontrava numa estrada aberta pelo homem, limpa de neve, sinalizando as cidades próximas. Longe de ser sinal de segurança — se era uma estrada feita pelo homem, era uma estrada feita para soldados, bandidos curdos, e só poderia me levar a uma nova morte — era o caminho a se seguir — se uma estrada se abria diante de mim, que outra opção eu tinha além de segui‑la? Aquele era meu destino.

Seguia num passo lento, claudicante, sem urgência de chegar, sem pressa para morrer. A estrada reafirmava‑se como uma escolha por meu povo — recusar a oferta dos lobos, preferir morrer como hay. A cada passo que dava, os uivos ficavam mais distantes, misturavam‑se novamente ao vento. Desistiam de mim.

Lobo: Ora, ora, ainda acredita que poderá chegar a algum lugar por estradas abertas pelo homem… Ainda confia numa humanidade que cometeu contra ti e teu povo os mais desumanos dos atos…

Eu: Confio apenas em mim mesmo, e ainda sou humano. Confio em meu par de pernas e pés para seguir, e dessa estrada eles se beneficiam.

E entre meus pensamentos, meu par de pernas e pés ecoavam como quatro, depois como oito, meus passos se multiplicavam e eu me perguntava se estava mesmo sozinho, se deus ainda caminhava ao meu lado.

Não. O que eu ouvia eram passos humanos, cascos de cavalo, cânticos fúnebres que até reconhecia como armênios. Veja só, seu lobo, a estrada ainda pode me oferecer isso.

Virando‑me para trás, vi um homem surgindo na curva: velho, envergado, costelas à mostra no peito nu, pés sobre o chão gelado — um pedinte sem nada nem ninguém a pedir. Poderia me surpreender que insistisse, que caminhasse, que insistisse em caminhar, mas não era isso o que fazia de um armênio um armênio?

Então vi que não, que não era só um armênio, não era um armênio só. Pois nem mesmo um fantasma armênio poderia avançar muito longe sozinho. Logo atrás dele surgia o segundo: jovem, ereto, com pedaços faltando — um rombo onde deveria estar o ombro direito, o braço esquerdo só até o cotovelo. Então veio outro, literalmente apenas osso. E outro ainda menos, praticamente transparente. Surgia um homem feito de cinzas, um decapitado, um aleijado sem pernas, um manco com os pés pregados em ferraduras, um musculoso arrastando os intestinos atrás de si.

Logo eu estava rodeado deles, fantasmas ensimesmados, em seu cântico fúnebre, que seguiam pela estrada sem me dar atenção, nem sinal de que me viam. Ei, sou como vocês, queria dizer, sou armênio! Mais morto do que os fantasmas, eu me sentia, e me perguntava aonde iam com tanta pressa, deixando a vida para trás, me perguntava se deveria segui‑los. Seria preferível ser criado por fantasmas humanos ou animais selvagens? Por lobos vivos ou homens mortos?

Eles cantavam:

Que nossa lira soe alto, que no mundo todo seja ouvido

Sobre nosso martírio, nosso assalto, nossos mortos e nossos feridos

Que suas notas sangue derramem, que sua letra lágrimas tragam

Pois se dessa dor nos esquecermos, que o mundo todo desonre os armênios

Eu queria acompanhá‑los, tanto no cântico quanto na estrada, mas parecia estar sempre passos atrás. Quando me lembrava de um verso, eles já haviam passado para o seguinte; quando saltava para uma palavra, eles a alongavam. Era como nas brincadeiras da aldeia, as crianças batendo a corda de juta num ritmo contínuo, e eu nunca encontrando o intervalo certo para entrar.

Vi então um vartabed, um padre armênio montado a cavalo. Parecia mais sólido do que todos os outros, menos fantasma, um pouco menos morto, um sacerdote conduzindo as almas ao paraíso possível. Olhou para mim e me abriu um sorriso. "Faz bem em nos acompanhar."

Aquele sorriso em minha língua materna me despertou do torpor, um graveto frágil ao qual me agarrar. "Para onde estão indo? Qual será nosso destino? Ainda há chance de nos salvarmos?" As perguntas brotaram de minha garganta como uma adolescência desafinada.

O padre meneou a cabeça de maneira etérea e imperturbada. "Nosso destino é apenas permanecer de pé, de olhos abertos, seguir caminhando, até que deus olhe para cá e perceba que não desistimos. Que ele não desista de nós. Nossa morte é uma injustiça que não podemos aceitar. Seguiremos caminhando até sermos salvos. Sem a vontade de deus, nem as folhas das árvores se movem."

Eu queria dizer que aquela era a pior das torturas. A insistência armênia, de morrer e continuar. Permanecer vivo apenas para morrer outra vez. Eu não podia mais.

"Você pode", disse o padre. "Ainda é muito jovem. Ainda irá morrer tanto e tantas vezes levantar… Só cabe a você encarar isso como milagre, não maldição…" O padre seguiu trotando e eu permaneci ali, sendo atravessado pela caravana fantasma.

Reparei que eram todos homens — adolescentes, jovens, velhos —, nenhuma criança, nenhuma mulher, como havia na caravana em que eu estivera. Olhei entre os rostos para tentar reconhecer alguém, meu pai morto, meu irmão vivo. Era difícil dizer, com tantos corpos sem rosto, crânios sem olhos, rostos sem carne.

Então vi, acho que vi, reconheci um primo entre a triste multidão. Era quase o mesmo, apenas mais magro, um pouco mais velho, e com um enorme corte que dividia sua face em duas. Corri para ele.

"Primo, primo! Sou eu!" Não me continha de felicidade em localizar alguém da família. Alguém ainda de pé, mesmo morto. O primo com que dividi tantas brincadeiras de infância, que era quase um irmão, com quem cresci junto. Ele não me reconheceu.

"Desculpe, você está enganado. Não sou seu primo. Toda minha família foi assassinada. Sou o único ainda de pé."

"Não, não, sou eu", eu disse meu nome e o assegurei com um sorriso, nossa família ainda existia, eu estava lá, e meu irmão também estava, eu tinha certeza, em algum lugar daquelas montanhas. Eu estava ainda mais certo de que era meu primo, depois de ouvir sua voz.

"Sou eu, sou eu, é que crescemos. Passamos tanta fome… Mas ainda somos os mesmos! Você não é Hampartzoum?"

Meu primo confirmou. "Sim, Hampartzoum Arakian, sei quem sou. E sei o que vi. Meu amado primo foi morto na minha frente. Sua cabeça rolou entre meus pés, seu corpo não pôde nem me acenar em adeus. Meu primo está morto, garoto. Por favor, me deixe prosseguir…"

Com lágrimas nos olhos, tive de lhe dizer. "Mas você também, Hampig… Não percebe? Você também está morto. E continuamos aqui."

Trecho de "Fé no Inferno", de Santiago Nazarian (Companhia das Letras, 2020), finalista dos prêmios Jabuti, Oceanos, e segundo lugar no Machado de Assis.

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