Para este Ensaio, a poeta Ana Estaregui selecionou textos de seu novo livro "Dança para Cavalos", publicado pelo Círculo de Poemas, em 2022. Nele, intensifica o gesto de flagrar os movimentos e a metamorfose das formas: o corpo, a casa, a gestação, os bichos, as plantas, as atividades domésticas. E convida o leitor a observar as passagens e transformações de tudo o que está ao redor. Aliando o caráter plural do catálogo da Fósforo e o trabalho de edição de poesia feito pela Luna Parque, a coleção Círculo de Poemas dedica-se à publicação de autores nacionais e estrangeiros, inicialmente compreendidos entre os séculos XX e XXI. É Também autora dos livros "Chá de jasmim" (Editora Patuá, 2014) e "Coração de boi" (Editora 7Letras, 2016). Com uma linguagem que dialoga delicadamente com as palavras de Ana, trago a artista Kiki Smith, conhecida por suas representações figurativas de mortalidade, abjeção e sexualidade, com obras nas coleções do Art Institute of Chicago, na National Gallery of Art em Washington, D.C., no Whitney Museum of American Art em Nova York.
3.
como a flor do tabaco
e sua fumaça ofertada
já está no ar
com todo tipo de pluma
que se desmancha com vento
porque sempre esteve
no rio sem cor
que atravessa os arrozais
o fogo ou um poema
que não tem começo ou fim
mas cruza a paisagem
com sua pequena água
e não começa nunca
porque esse movimento
começar
não existe
é um gesto antigo
um desenho circular preexistente
uma cicatriz de nascença
um ovo
8.
daremos nossa água
como quem devolve sua última safra
em retribuição à dádiva
regaremos as plantas
diariamente
agora sabemos as quantias exatas
que cada uma precisa para crescer
trazemos o grande felino impresso nas costas
o modo como andamos
como espreguiçamos a coluna
nos arqueando para trás
o modo como aproximamos as mãos em concha
da boca
não precisamos mais esconder as presas
e nem as orelhas
dançando, acordaremos os cavalos
que agora descansam
no interior manso da casa
a casa já não tem paredes, nós somos a casa
palafitas ancas, penugem e luas em repetição
temos os cavalos no corpo
não: somos os cavalos
os músculos e não só
42.
toda árvore se dobra
quando pela primeira vez
um fruto nasce
sumo e peso
a água pura e a seiva
escura
até o final dos dedos, os novos ramos
abrindo sépalas e esporos
até que tudo seja da cor do fruto
nesse momento a árvore
e tudo o que a antecedeu até ali
as sementes em forma de barco
toda a água
os galhos ceifados pela chuva, milhares
e milhares de anos
de antigas árvores iguais
repetindo, repetindo
os raios solares no inverno
os ninhos dos pardais
os pardais
tudo ali será amarelo
e mesmo as folhas verdes
e mesmo a casca escura
66.
o nosso silêncio
é feito de rochas
a nossa fala morreu em ato
deixando em aberto o eco
choramos junto aos bois
e, com as mãos, juntamos
cabeça a cabeça
para emudecer após o baque
agora riscamos os dias
ao mover os pés
com os pés dançamos
sem dizer nenhuma palavra
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