Entretempos

Curadoria de obras e exposições daqui e dali, ensaios entre arte, literatura e afins

Entretempos - Cassiana Der Haroutiounian
Cassiana Der Haroutiounian

Emergência - Ensaio Palavra-Imagem

com Rodrigo Braga e 8 escritores

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Emergência, 2022 - imagem exclusiva e inédita para o entretempos, de Rodrigo Braga
Emergência, 2022 - imagem exclusiva e inédita para o entretempos, de Rodrigo Braga - Rodrigo Braga

Para este domingo histórico e vermelho, convidei meus amigos escritores do grupo que participo na "Escrevedeira" com a querida Noemi Jaffe para soltarem suas palavras em pequenos textos sobre a imagem "Emergência" de Rodrigo Braga. Inédita e produzida para o blog, é uma continuação de "Ponto zero" sua série mais recente e segue uma linhagem de reflexão existencial humana e também política. Braga é artista visual e há mais de duas décadas aborda as relações conflituosas entre a humanidade e a natureza. Expõe regularmente no Brasil e no exterior e tem obras em diversos acervos públicos e privados. Mais do que qualquer outro Ensaio, espero que estas palavras e esta imagem sejam apenas o começo de um Brasil pautado pela lucidez humana.

#Lula#Haddad

1-

Foram todos partos vaginais, o que quer dizer normais, na linguagem dos médicos. Uma ironia, nada foi normal naquela noite. Todas as futuras mães da cidade deram entrada ao mesmo tempo na maternidade. Jovens, velhas, em idade reprodutiva e as que não sangravam mais. Todas. Isso não podia ser normal, os gestores do hospital desconfiaram, chamaram as forças-tarefa. Um mutirão de cesarianas, pensaram, mas naquela noite todos os partos seriam normais, ou vaginais, como preferem dizer. As mulheres não paravam de chegar para parir, médicos, enfermeiras, parteiras, doulas foram chamadas às pressas. Sem tempo para anestesias, e onde foram parar os bisturis? As bolsas estourando, contrações, dilatações, respirações. As doulas cantavam para animar, as futuras mães de cócoras, nas macas, nas camas, no chão até – eram muitas. De pernas muito abertas, a buceta magnífica pressionada pelo útero cheio, uma delas deu um grito de gozo. A parteira entendeu: coroou. Dispensou anestésicos, ferramentas, protocolos (não dava mais tempo), enfiou a mão no útero quente, revolveu no sangue, puxou firme para fora e levantou o braço com muito cuidado, para todas verem o lindo ovo vermelho saído do ventre.

Iara Biderman

2-

Voto

Quando acordou o vermelho já estava lá. Imenso. Muito anterior ao fogo dos infernos, à luz do sol. Nem cegava nem iluminava. Refletia todas as cores do espectro sem perder a compostura. E não era neutro. Não equivalia. Destoava. O desvio era vermelho. A concórdia também. E todos eram estranhos e eram irmãos. E o amor alcançava a cada um. Como uma estrela que cai e atravessa a cabeça. Pacífica. Perfurante. Como um holofote no plexo, aceso. Diretamente. Abstração maior que toda língua, concreta. Necessária para o salto, antes e depois do incêndio. Espécie de orquestração de urgência e engajamento. Modo de transferência da confusão e violência diárias para alguma significação. A vida e a verdade num mesmo dia e noite, no gesto.

Luciana Miranda Penna

3-

Pau Brasil

No meio do Pau Brasil tem uma resina vermelha como brasa. Vermelha como sangue, da cor do fogo que tem o poder de transformar.

Vermelha é a menstruação, esmalte, batom. É a coloração das pessoas emocionadas com as rosas vermelhas que receberam. O coração com Amor escrito dentro.

Como romã, como groselha pitanga pitaia.

O ser humano conseguiu extrair os pigmentos vermelhos já no Paleolítico, há 35 mil anos. Lendas celtas apontavam existência de uma ilha bem aventurada no Oceano Atlântico, chamada assim:

Bresail, brasail - a terra da bem aventurança-, bracil, brazier, braise, brasas.

Da cor da aurora.

Escarlate, rubi, coral, carmim.

O pigmento, usado pelos indígenas, foi explorado e explorado e explorado por portugueses e outros tantos, quase todos brancos. Uma chacina de árvores. Navios inteiros, navios negreiros. Vieram herdeiros, foram vindo mais grileiros madeireiros, políticos e fazendeiros passando trator, passando boiada, matando índio e o que se dirá dos pretos, pobres e mulatos .

Tana Millan

Mas.

Essa mestiçagem. A diversidade de uma raça potente. De cultura, música e poesia, palavra que não morre nem. Você já foi à Bahia? A bandeira pendurada em Pau Forte. Pau de tinta. Pelourinhos, periferias, gente ribeirinha e manos e mais.

Agora segura. Que lá vem o Brasil. Driblando com raça o racismo e o ódio hediondo, ódio às minorias e à mistura, ao pobre, ao povo, ao óbvio e ao novo. Com todos os estilhaços de balas- granadas espalhando as fakes e o medo, pavor, terror, e o horror do fogo sanguíneo das queimadas - o amanhã tem um coração pulsando vermelho feito a brasa da nossa seiva, e domingo há de renascer um País.

Lá vem o Brasil. Sinos. Atabaques. Pandeiros. Tun tun. Tun tun. Tun tun.

4-

Nascerá

Do fundo de uma lagoa profunda, quieta há muitos anos, alguma coisa um dia se soltou. Não com um estalo forte, mas uma guinchada baixa e longa que terminou na abertura de um caminho de ar. Borbulhava – e as pessoas da aldeia, que acreditavam que ali morava a alma do povo, se debruçavam sobre aquilo, chocadas. A cada bolha que emergia, a água suja voltando a ser mais líquida, menos barro. Mas vinha vermelha. Ao redor, tudo era palpite: um animal perigoso? um deus bufando? o caldeirão que fez o mundo entornando de novo?
Ninguém dormiu até que sim; não devia ser nada demais. Dois homens foram postos de vigília; que tocassem o alarme, caso algo. Postando-se em lados contrários, os homens não se entendiam. Enquanto um estava ali por interesse próprio e de meia dúzia, o outro amava aquela terra independente de quem pisava em cima. Enquanto um colocava suas forças nas vantagens que poderia tirar de seu posto, o outro tirava suas forças das desvantagens que queria evitar ao seu povo. Enquanto um, criança malvada, ameaçava tocar o alarme só para rir do desespero da gente, o outro, velho de sabedoria, só pensava em como pôr seu próprio braço na história. Enquanto um pedia ao outro para fazer o seu trabalho, esse, desde que de longe, retornava com provocação por qualquer coisa, metido que era a valentão.
Até que, no meio da noite mais escura daquele tempo esquisito, só os dois ali, uma borbulha se duplicou de altura e a próxima já era umas cinco vezes mais larga. A terceira já não dava a enxergar onde batia e a seguinte engoliu os dois. Um rio de sangue vermelho vivo – incontível – arrebentava passagem naquele buraco pequeno de chão, água e ar. O debochado valentão foi o primeiro a correr, enquanto o outro só viu um caminho: mergulhar.
Depois de muito morrer, e ficar preso na várzea um tempo sem fim, manteve-se respirando e vivo pelas inúmeras bolhas de ar que vinham com a correnteza vermelha. E se fosse flexível, foi entendendo que os turbilhões daquele mar não o quebrariam, pois tinham sentido. Perdeu-se por vezes, mas então se achou, a si mesmo e à razão. Seus tríceps fortes, musculosos de outros tormentos em outras aldeias e outras épocas, começaram a conseguir conduzi-lo de novo para onde precisava chegar. A provocar o maremoto todo, feito do sangue mesmo de muita gente que nunca mais se viu, era o novo impondo o seu nascer.
Nascerá

Gabriela Jardon

5-

Vermelho,

O rapaz entra mas não olha para frente, seus olhos parecem fechados; fundos, olham para dentro. Como um cego, as pupilas desconfortáveis não param. As mãos também mexem, mas os movimentos são pequenos. Está atento, percebemos isso pelos mínimos tremores que dá quando ouve alguns acordes. Ele é a música, mesmo antes de tocar.

Coloca o violino sob o queixo, tampa a cicatriz da marca do violino incrustada na cara. E, do nada - para o tudo - dá o primeiro acorde. Sem partitura, seu corpo cresce, não tem mais tamanho, não cabe no palco. Toca de olhos abertos ou fechados, tanto faz porque ele não está mais lá; dentro dos acordes da orquestra, é uma nota musical. A cabeça balança e os fios do cabelo ampliam o movimento, o arco alonga para trás, um balé sem exageros, na medida exata. Dono do tempo, segura o arco e corta um fio solto sem prejudicar o andamento da música; humilde, ele é e está, de verdade. Na primeira fila vemos e ouvimos tudo ao mesmo tempo. A harmonia da vida, vista de perto. No desconforto da escolha errada da camisa cor de sol, percebo que existe alguma coisa muito maior do que as diferenças. Nesse mundo um pouco fora do chão, as pessoas se olham e tocam juntas, todas num mesmo tom. Se houver alguma cor nesse lugar, é a cor da paixão.

Hanita Bergman

6-

Vermelho

Homens e mulheres, esperam noite, esperam dia. Minutos sonolentos, embolados no tempo, quase ao acaso, cutucam o alvorecer. Já passou da hora de acordar. Sol de fogo, vem já, embalado, gritar fora, dissipar. Um cansaço enorme, as maldades dos séculos pesando sobre nós. Vontade de libertar a verdade, espantar o assombro, desridicularizar o diferente. Por favor, vamos ouvir Imagine, mais vezes, muitas vezes, no último volume. E que voltem todas as palavras, saídas de bocas imprudentes, pra poderem ser ditas novamente. Homens e mulheres querem estampar um grito na pele. Grito medo grito mudo, enquanto durar esse dia. E poderem enfim molhar as mãos no fundo da terra e tirar de lá um enorme coração pulsante, vermelho, emergente.

Denise Daltro Vianna

7-

travessia

domingo

final de tarde

litoral de São Paulo

um menino

observa

o pôr-do-sol

um polvo

é arrastado

pelas ondas

até a faixa de areia

um polvo

é arrastado

pelas ondas

de volta ao mar

um povo

atravessou

o mar

vermelho

um polvo

atravessou

o mar,

vermelho

domingo

final de tarde

litoral de São Paulo

um menino

observa

o pôr-do-sol

Álvaro Uliani

8-

Indecência, insultos e leviandades

Desaforo de falsos pudores que escondem a perversão, poluidores em pose de vestal, desrespeito aos fatos, truculência e imposições; arapucas das mentiras camufladas em conhecimento raso. E nós aguentando como podemos, contando dias e mortos, temendo pelos frágeis e por conquistas ameaçadas. De atônitos a indignados esperamos um raio forte passar pelo prisma. Com aversão a um cristianismo de conveniência que faria o Messias corar, rogamos para que onde haja um Deus possa haver a Deusa, possa haver deuses e a ausência de qualquer um deles. Que não se ignore o sofrimento das ruas na insensibilidade irresponsável e senil, que o último combate seja contra a beligerância e que haja espaço para todo o mundo existir. Que a vergonha urgente promova um desvio, e, rubra, garanta a presença de todas as cores.

Otavio Dutra de Toledo

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