Entretempos

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Entretempos - Cassiana Der Haroutiounian
Cassiana Der Haroutiounian
Descrição de chapéu
terrorismo

A tatuagem de pássaro - Ensaio Palavra-Imagem

com Dunya Mikhail e Jananne Al-Ani

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Jananne Al-Ani. Untitled I and II. 1996, exclusivo entretempos
Jananne Al-Ani. Untitled I and II. 1996, exclusivo entretempos - Jananne Al-Ani

Neste Ensaio, trago Dunya Mikhail, hoje uma das poetas mais importantes do Iraque com trechos de seu primeiro romance "A tatuagem de pássaro", ainda inédito no Brasil. Finalista do Prêmio Internacional de Ficção Árabe de 2021, será publicado pela Editora Tabla nos próximos dias e já está em pré-venda. Na imagem, trago a também iraquiana Jananne Al-Ani com uma de suas principais obras: "Sem Título, Projeto de Velar". A fotografia em preto e branco, de meados dos anos 90, representa suas irmãs, ela mesma e sua mãe, em vários estágios de colocação do véu, retirada do véu ou retirada da roupa, questionando os códigos que envolvem as mulheres árabes. "A tatuagem de pássaro", de Mikhail, é um romance que narra a terrível e fascinante jornada de Helin, uma mulher iazidi que foi sequestrada e mantida em cativeiro como escrava sexual pelo Estado Islâmico, no norte do Iraque. Colocar as duas juntas, é só um pedaço das provocações que sinto urgência em trazer sobre o feminino no mundo árabe.

Jananne Al-Ani. Untitled I and II. 1996, exclusivo entretempos
Jananne Al-Ani. Untitled I and II. 1996, exclusivo entretempos - Jananne Al-Ani

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O silêncio era a terceira língua das prisioneiras, depois do árabe e do curdo. A prisioneira mais nova, Laila, tinha dez anos, e a única palavra em árabe que conhecia era taftich —inspeção —, que aprendeu ouvindo aquela mulher que toda vez que entrava na sala anunciava: "Taftich!". Nessa hora, as mulheres formavam uma fila indiana, e a inspetora vasculhava dentro de suas roupas para se certificar de que não dispunham
de nada afiado. Todo dia o número de inspeções aumentava, porque os casos de suicídio entre as prisioneiras chegaram a tal ponto que alarmou os membros da organização. Eles haviam fracassado em detectar o que as mulheres usavam para cortar os pulsos e interromper a vida.
Rihana tentou se enforcar com uma corda que encontrou no canto da sala. Aquela era a sala de esportes quando a escola era uma escola, e aquela corda era usada para brincar de pular corda. Uma das mulheres que pertencia à organização correu a seu encontro e conseguiu soltar a corda na hora certa. Salvou-lhe a vida e em seguida espancou-a com a mesma corda. Aquela era a inspetora que durante a primeira semana havia passado pelas prisioneiras perguntando: "Você é casada?" e "Qual a data de sua última menstruação?". Uma das prisioneiras lhe respondeu, indagando: "Por que a pergunta?", então outra gritou: "Por quê?", e outra ainda mais alto: "Por quê?!". A inspetora deu um passo para trás, exclamando: "Porque a lei do Estado proíbe a venda de mulheres grávidas!".
Rihana supostamente deveria ser entregue de graça aos combatentes apenas para os trabalhos domésticos, segundo a lista de preços estabelecida pela organização para quem ultrapassara os cinquenta anos. Mas o olhar partido com o qual retornava após ser levada por um deles revelava que alguns dos combatentes violavam as regras de sua organização. "Mama Rihana", assim Laila passou a chamá-la desde aquela noite sombria na segunda semana de cativeiro, quando Laila retornou à sala nua,
gemendo de dor e humilhação. Jogaram suas roupas atrás dela. Uma das prisioneiras as recolheu e a vestiu, dizendo: "Que o Senhor vingue esta menina e todas nós". Ela disse em curdo para que a fiscal não entendesse. Como Rihana trabalhava na cozinha, apressou-se até Laila com um copo de água e permaneceu a noite toda acordada a seu lado. Laila abriu os olhos e viu Rihana passando um pano molhado em sua testa para tentar diminuir a febre que lhe ardia. Trocaram um olhar com uma mistura de
gratidão e pesar. Rihana falava árabe e não entendia o curdo, por isso pedia ajuda a Helin para traduzir a conversa entre ela e Laila. Não sempre, mas nos momentos em que coincidia de nenhuma das três ter sido estuprada. Elas não tinham vontade de falar após serem estupradas. Entravam na sala em silêncio, só cortado pela saudação de um estuprador a outro, que chegava em dissonância, como uma risada num funeral. Rihana soube pela tradução de Helin que Laila não via a família desde aquele dia em que sua mãe fez tranças em seus cabelos e elas partiram com as demais famílias do vilarejo em direção à montanha. Não conversaram mais porque todas sabiam o resto da história: como separaram os homens das mulheres, os adultos das crianças, e as meninas acima de nove anos do restante da família. Certo dia Laila parou de vez de falar, até mesmo com Helin. Foi quando encontraram Rihana morta. Não havia em sua posse nem objeto afiado, nem corda. Não souberam como ela morrera. "A tristeza a matou", disse uma das prisioneiras. As lágrimas rolavam copiosas pelas bochechas de Laila. Helin a colocou no colo, chorando também. Manteve-a no colo o máximo que pôde, apesar da dor nas costas por causa da surra
que levara de Abu Tahsin. Ele já a havia comprado e devolvido. Helin começou a refazer as tranças nos cabelos de Laila enquanto recordava Abu Tahsin levando-a para sua casa em Aleppo, e ela vomitando nele durante o sexo. Ela havia se sentido enjoada no caminho, tanto que vomitou logo ao chegar à casa dele. Ele bateu nas costas de Helin com um bastão até ela desmaiar, só recobrando os sentidos quando estava no hospital, com soro na veia. A enfermeira lhe entregou um comprimido com um copo de água e perguntou: "Como você está?". Helin caiu no choro e respondeu: "Eu não sou daqui. Por favor,
me ajude a voltar para minha família no Iraque".

**tradução do árabe para o português: Beatriz Gemignani

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