Entretempos

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Entretempos - Cassiana Der Haroutiounian
Cassiana Der Haroutiounian
Descrição de chapéu Itália União Europeia

Com o coração saindo pela boca - Ensaio Palavra-Imagem

com Jonathas de Andrade e Jacopo Crivelli

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Livro "Com o coração saindo pela boca"de Jonathas de Andrade
Livro "Com o coração saindo pela boca"de Jonathas de Andrade - flavio freire

Neste domingo, trago o já consagrado encontro entre o artista Jonathas de Andrade e o curador Jacopo Crivelli Visconti, no livro editado pela italiana "Silvana Editoriale" e organizado por Crivelli. Um dos pontos altos do ano do artista foi ter sido eleito representante do Brasil na 59a Bienal de Veneza (que segue aberta ao público até final deste mês) e na qual o artista ocupa o Pavilhão do Brasil no Giardini, a convite do curador – por sua vez, apontado pela Fundação Bienal de São Paulo para a curadoria da representação nacional brasileira na mostra italiana – com a instalação "Com o coração saindo pela boca". O lançamento da publicação foi na na quinta passada na Galeria Nara Roesler e contou com um bate papo entre os dois. O lançamento internacional da publicação aconteceu em junho, primeiramente como parte da programação oficial da Art Basel, na Suíça e, mais tarde em Veneza, na Fondazione In Between Art and Film. As palavras são de Crivelli, que se debruçou especificamente sobre a obra de Jonathas para a Bienal de Veneza.

Livro "Com o coração saindo pela boca"de Jonathas de Andrade
Livro "Com o coração saindo pela boca"de Jonathas de Andrade - flavio freire

A entrada é por um ouvido. A saída, um pouco adiante, por outro. De uma das paredes emergem umas costas e, no chão, um olho brilha. Algumas mãos se movem por cima de chamas, enquanto um pé esmaga uma jaca e uma cabeça de vento flutua acima de uma língua mordida, decepada. Esses e outros pedaços de um imaginário corpo brasileiro ocupam um lugar simbolicamente carregado: o pavilhão nacional na 59ª Bienal de Veneza. Eles estão colocados, portanto, no âmago de uma discussão, pertinente e ontologicamente irresolúvel, sobre o significado e o mérito de se "representar" um país no âmbito de uma grande mostra internacional.

Segundo o dicionário brasileiro de língua portuguesa Michaelis, representar é tanto "fazer as vezes de; apresentar-se no lugar de" quanto "ser a imagem ou a reprodução de; figurar como emblema, imagem ou símbolo"; e, ainda, "fazer-se ou tornar-se presente ou evidente; ser ministro ou embaixador de; interpretar; encenar". Todas essas acepções são desafiadoras: como "interpretar" o Brasil, nesse momento? Como "apresentar-se em seu lugar", como ser seu "emblema, imagem ou símbolo"? "Emblema, imagem ou símbolo" de qual parte de seu todo tão inapreensível?

Em sua instalação, Jonathas de Andrade sugere que o caminho para representar o Brasil, ou ao menos aludir a ele, ao sofrimento do seu povo e à destruição de sua paisagem, tem que passar inevitavelmente e em primeiro lugar pelo corpo de quem vive na pele e na carne, cotidianamente, as dificuldades, as violências e as injustiças que se repetem, ano após ano, década após década, século após século. Por isso a ênfase nas partes de corpo separadas e fragmentadas, porque se trata, de fato, de um corpo uma e outra vez humilhado, silenciado, ignorado e despedaçado. Não um, aliás, mas muitos: centenas, milhares, milhões de corpos de raças, gêneros, crenças e culturas diversas, mas não todos igualmente violentados – porque somos todos iguais perante a lei e o poder, mas alguns são bem menos iguais que outros, como sabemos.

Essas partes isoladas e objetificadas de um corpo também o transcendem, ao se introduzir outro elemento estruturante da exposição e da obra de Jonathas como um todo: a linguagem. A linguagem viva, do dia a dia, das inúmeras expressões que, para falar das fraquezas, das virtudes, das atitudes e das falhas pessoais e coletivas da gente brasileira, recorrem, certamente não por acaso, aos mesmos pedaços de corpo: pés, mãos, língua, cabeça, ouvidos, costas, estômago, pernas, braços, dentes, peito, bunda, olhos, queixo e esse coração que, de tão grande, generoso e desesperado, às vezes não cabe dentro do peito e acaba escapando pela boca. "Me dei conta de que existem literalmente centenas de expressões populares que fazem uso das partes do corpo para descrever sentimentos e situações. Elas envolvem literalidade e absurdo para dar conta da subjetividade, o que, neste momento histórico do Brasil, é muito revelador", diz Jonathas. E de fato, a literalidade – a quase corporeidade das expressões – é um de seus traços mais marcantes, e o que nos levou a optar por traduzi-las de forma estritamente literal, interessados mais em transmitir a sensação física e tátil envolvida nelas do que seu significado figurado. As expressões são organizadas na exposição como o fio condutor que explicita e torna quase tangível a existência de um universo de ditos imensamente maior do que os que foram traduzidos em obra.

É significativo – por evidenciar a dimensão afetiva e pessoal do trabalho, marcada por memórias do passado – que, entre as referências que ajudaram a definir a estética da instalação no pavilhão, estejam as "feiras de ciências". Outra referência visível é a experiência do artista, em seus anos de infância, de visitar Eva, uma gigantesca boneca de fibra e espuma na qual o público podia entrar para conhecer por dentro o funcionamento do corpo humano, e que passou por exibições em diversas cidades brasileiras ao longo dos anos 1980.

Na filigrana dessas expressões, do que elas querem dizer e de como o dizem (através de gestos estranhos e desengonçados, de choques e trancos bruscos, como de marionetes descontroladas), aparece "o sentido do sem sentido da condição humana, e a inadequação da abordagem racional",[1] como escreveu Martin Esslin na sua célebre definição do Teatro do Absurdo. A referência não é gratuita: a estética das esculturas é tanto carnavalesca (as orelhas, por exemplo, são inspiradas nas conversas e trocas de Jonathas com Silvio Botelho, autor dos populares bonecos gigantes do Carnaval de Olinda) quanto teatral. E o absurdo, seja poético, violento, escatológico ou irônico, é o traço marcante de muitas dessas expressões, quando tomadas em seu sentido literal, da mesma forma como são absurdos a enorme bunda mole onde o público pode sentar-se ou deitar-se para descansar um pouco, ou o dedo podre e imenso imortalizado no ato de apertar, de novo e para todo o sempre, o botão que a história demonstrará ser o errado.

A "abordagem racional" não tem vez na realidade social, política, ética e racial do Brasil de hoje, talvez no mundo de hoje. E as cobras que se entrelaçam aos corpos de seus tutores no vídeo Nó na garganta escancaram a impossibilidade, também, de se racionalizar nossa relação com a natureza, caracterizada por uma mistura de fragilidade, erotismo, ameaças e destruição. É preciso, então, para tentar dar conta do que esse Brasil e esse mundo nos dizem e nos impõem, enveredar pelo caminho do irracional, do gigantesco, do diminuto, do pantagruélico, do inabarcável, da alegoria, do símbolo, do excessivo, do lúdico.

O caminho do absurdo e do jogo, da sabedoria da criança que aponta o dedo e diz: "O rei está nu".

[1] Martin Esslin, O Teatro do Absurdo (1961), trad. Bárbara Heliodora. Rio de Janeiro: Zahar, 1968.

Livro "Com o coração saindo pela boca"de Jonathas de Andrade
Livro "Com o coração saindo pela boca"de Jonathas de Andrade - flavio freire

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