Entretempos

Curadoria de obras e exposições daqui e dali, ensaios entre arte, literatura e afins

Entretempos - Cassiana Der Haroutiounian
Cassiana Der Haroutiounian
Descrição de chapéu Armênia

Não há coisa no mundo mais viva do que uma porta

Ensaio Palavra-Imagem com Heitor Loureiro e Kader Attia

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Este Ensaio traz a Armênia (mais precisamente Artsakh) e com ele um peso afetivo daqueles, por ser meu tema preferido na vida. Minha segunda casa, meu refúgio, meu território ancestral. Convidei meu amigo Heitor Loureiro para as palavras. Professor de História e Relações Internacionais, consultor político de tantos projetos meus e o não-armênio que mais sabe sobre a Armênia que eu conheço. Um Ensaio que fala sobre o significado da porta - abrir ou fechar; ir e vir. O Azerbaijão fechou o corredor de Lachin impedindo toda a população de Artsakh de receber qualquer tipo de suprimento, deixando todos em uma situação extremamente precária no auge do inverno caucasiano. Para a imagem, escolhi apenas uma: a obra "Assassinos! Assassinos! do artista, curador e pensador francês Kader Attia. Ele, que cresceu entre a França e a Argélia, faz dessa experiência de pertencimento a diferentes culturas sua prática. Loureiro e Attia trazem a potência simbólica de uma porta em manifestações políticas, humanitárias e culturais de uma nação.

Assassinos! Assassinos! - Portas de madeira e megafones nainstalação de Kader Attia, exclusivo entretempos
Assassinos! Assassinos! - instalação de Kader Attia, exclusivo entretempos - reprodução

Toda porta é também um portal. A ligação entre dois mundos, a mudança de ambiente, a conexão entre dimensões que por algum motivo não estão unidas. A porteira da fazenda, o portão de embarque, a porta da casa que traz segurança e privacidade ou aquela porta semiaberta que é um convite à entrada, à espiada. Entre. Ou não. Só não permaneça debaixo do batente. Nem dentro, nem fora. Este é o lugar dos eguns, entidades que nas religiões de matrizes africanas representam os que já partiram e ainda não perceberam que fizeram suas passagens. Ficam ali, à porta, até encontrarem seus caminhos.

Mas uma porta também pode representar um obstáculo. A porta batida com força na cara de alguém. A porta giratória de um banco que trava "automaticamente" sempre para o mesmo "tipo de gente". As grades de uma prisão que, não por coincidência, encarceram pessoas muito parecidas e que, enquanto cerram corpos negros, escancaram o portão do racismo. Mas continuam lá, portando vidas e sonhos.

Há portas metafóricas. Lugares de entrada e saída de pessoas, produtos, ideias, sonhos e desejos. Por isso, devem permanecer sempre abertas, permitindo essa fluidez de vida e oxigenando povos. Uma dessas portas é o corredor de Lachin, estrada que liga a República da Armênia à República de Artsakh, país de população armênia e não reconhecido como independente pela comunidade internacional. Para manter essa ligação umbilical, o corredor de Lachin atravessa a República do Azerbaijão, vizinho hostil à Armênia e reivindicante de Artsakh (ou Nagorno-Karabakh, ou ainda Qarabağ) como parte de seu território. É por esse caminho que passa boa parte dos suprimentos que mantêm vivos os cerca de 130 mil armênios de Artsakh, incluindo 30 mil crianças, especialmente durante o inverno rigoroso típico das montanhas do Cáucaso.

Faz 49 dias que esta porta está fechada, interrompendo o fluxo no que os armênios chamam de "estrada da vida" (կյանքի ճանապարհը). Alimentos e medicamentos não chegam em Artsakh, crianças não poderão iniciar o ano letivo, doentes não podem ser enviados para Yerevan, capital da República da Armênia, para receberem tratamento adequado. Essa porta foi fechada para asfixiar a população armênia local, forçando-os a sair da região onde habita há séculos, para permitir ao governo do Azerbaijão - mandante do fechamento do corredor de Lachin - integrar as terras armênias ao projeto expansionista e autocrático de Baku.

Portas fechadas não trazem boas recordações aos armênios. Durante o genocídio iniciado em 1915 e perpetrado pelo governo otomano, muitos armênios foram trancados em suas igrejas, enquanto soldados turcos ateavam fogo nos templos, transformando em cinzas a fé e o povo. Outros tantos tiveram as portas de suas casas arrombadas pela gendarmeria otomana para arrancar homens em idade de combate dos braços de suas famílias e levá-los para a morte. Após o genocídio e a fundação da centenária República da Turquia, os armênios que sobreviveram no país precisaram cerrar sua identidade dentro de suas casas, professando em segredo sua fé e mantendo sua língua e suas histórias em voz baixa.

Os armênios de Artsakh, enfraquecidos após a derrota na guerra de 2020, após a pandemia e convulsões políticas internas, não tem condições, sozinhos, de abrirem a porta de sua própria casa para que os hóspedes indesejados se retirem e para que a vida volte a fluir pelo corredor de Lachin. A comunidade internacional acompanha a situação fazendo pouco ou nada para permitir que a porta que comunica os armênios de Artsakh com o mundo seja reaberta. Em tempos de guerra na Ucrânia, o gás produzido no Azerbaijão substitui o russo e diminui o impacto do conflito na população europeia no inverno. O mesmo gás que falta nas casas dos armênios de Artsakh, pois o fornecimento é frequentemente interrompido pelo Azerbaijão.

É urgente que a porta de Artsakh seja aberta e que o corredor seja restabelecido. Todos nós precisamos bater, tocar a campainha e exigir que ela seja aberta. O mundo precisa pressionar o Azerbaijão para evitar uma catástrofe humanitária que se avizinha. É preciso que o corredor de Lachin volte a ser a estrada da vida. Há um verso famoso de um grande poeta armênio, Hamo Sahyan, que diz: "abra a porta, a primavera está chegando" (Դռները բացեք, գարուն է գալիս). Mas se essa porta não for aberta agora, talvez não haverá mais armênios em Artsakh que sobrevivam ao inverno.

* O título deste ensaio é uma citação do poema "A Porta" de Vinícius de Moraes

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