Entretempos

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Entretempos - Cassiana Der Haroutiounian
Cassiana Der Haroutiounian

A memória e a imagem dos mortos - Ensaio Palavra-Imagem

com Pedro Cesarino e Christian Boltanski

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La Réserve des Suisses morts, obra de Christian Boltanski, exclusivo entretempos
La Réserve des Suisses morts, obra de Christian Boltanski, exclusivo entretempos - reprodução

Neste Ensaio, trago o escritor e antropólogo Pedro Cesarino com suas palavras para a obra "Reserve of the Dead Swiss" do sempre incrível Christian Boltanski. Cesarino, Professor do Departamento de Antropologia da FFLCH/USP, que acaba de lançar "A repetição" pela Editora Todavia, é também autor de "Oniska – poétixa do xamanismo na Amazônia" (Perspectiva/FAPESP, 2011), "Quando a Terra deixou de falar – cantos da mitologia marubo" (Ed. 34, 2013) e os livro de ficção "Rio Acima" (Companhia das Letras, 2016). Em sua instalação, Boltanski evoca as burocracias mundanas da mortalidade, o contraste entre o institucional e o pessoal, entre a memória e o esquecimento. Que potência de encontro entre Pedro e Christian.

La Réserve des Suisses morts, obra de Christian Boltanski, exclusivo entretempos
La Réserve des Suisses morts, obra de Christian Boltanski, exclusivo entretempos - reprodução

Destruir a individualidade e a dignidade através do aprisionamento em massa, negar o direito à memória pelo extermínio: tais processos, comuns aos episódios de genocídio, constituem parte significativa das reflexões propostas pela obra de Christian Boltanski. Ao tentar oferecer uma segunda chance a materiais e imagens fotográficas de pessoas anônimas, Boltanski recupera a empatia pela individualidade perdida e a capacidade de refletir sobre a ausência. "O que me interessa e o que tenho tentado falar sobre", dizia o artista falecido em 2021, "é o que chamo de pequena memória. Isso é o que nos diferencia uns dos outros. A grande memória pode ser encontrada nos livros de história, mas a reserva de pequenos fragmentos de conhecimento que todos nós acumulamos é o que nos define"[1]. Em um arquivo potencialmente infinito, o artista estimula a possibilidade do afeto pelo resgate de rostos desconhecidos que se perderam na passagem do tempo. A monumentalização da ausência é instaurada através da intervenção artística, que restitui aos mortos um lugar no arquivo coletivo da memória. O uso de fotografias conjugadas às caixas de arquivo possui aí um papel central, pois é através da figuração que culturas ocidentalizadas aprenderam a lidar com a morte e com a tentativa de fixar a ausência em algum rastro material capaz de remeter a quem se foi.

Os processos genocidas possuem uma outra face igualmente perversa, especialmente quando tratamos do extermínio das populações indígenas e africanas pelo colonialismo. Trata-se do assim chamado epistemicídio, sobre o qual refletiram Sueli Carneiro e Boaventura de Souza Santos. Embora razoavelmente conhecido, o conceito possui consequências vastas e pouco exploradas pelo pensamento contemporâneo, que ainda se baliza quase que exclusivamente por referenciais europeus. O tratamento da morte e da memória pode ser considerado como um exemplo de tal hegemonia: é ele que faz com que o trabalho de Boltanski se torne compreensível pela grande maioria do público espectador de arte no mundo globalizado. Essa compreensão, certamente fundamental e muito bem trabalhada pelo artista, não abrange, contudo, outras formas de relação com a ausência que permanecem desconhecidas. Via de regra, povos indígenas não se relacionam bem com a permanência de imagens dos mortos. O caso recente da divulgação pela mídia e pelas redes sociais de fotografias de pessoas yanomami falecidas ou desnutridas, rapidamente desencorajada a pedido dos próprios indígenas, é sintomático. A hiper exposição da imagem midiática, afinal das contas, faz parte do mesmo conjunto de pressupostos que nos atrela à figuração dos mortos conservada na arquitetura funerária, em álbuns familiares ou em tantas outras formas de classificação e armazenamento dos acervos do passado. O que permite essa relação? O fato de que concebemos imagens como uma espécie de vestígio afetivo de pessoas ausentes, mas, ainda assim, ontologicamente separado de seus protótipos. Em outros termos, estamos acostumados a conceber uma descontinuidade entre o corpo (vivo ou morto) e sua representação figurativa, o que permite certa circulação desimpedida da imagem pelos mais diversos suportes e formas de discurso.

Autores como Hans Belting e W.J.T. Mitchell ressaltaram um certo aspecto animista no trato contemporâneo com a imagem, por vezes capaz de afetar os seus protótipos e destinatários, como no caso do revenge porn. Ainda assim, essa relação não pode ser confundida com outras formas de pensamento para as quais o vínculo potencialmente perigoso entre pessoa e figuração não é episódico, mas matricial, atrelado a consequências físicas e aos desdobramentos da trajetória póstuma dos seres humanos. O genocídio dos Yanomami e de outras sociedades indígenas esconde, também, a incapacidade de compreensão desse vínculo, que se constrói na direção oposta à da monumentalização figurativa da ausência. Para os Yanomami, assim como entre os Marubo (povo falante de língua pano do Vale do Javari com os quais trabalhei), todo vestígio da pessoa deve ser apagado quando de sua morte: pertences são queimados, locais de trabalho no roçado são destruídos e, no limite, até malocas e aldeias são abandonadas. Os xamãs marubo realizam um longo ritual de condução do duplo do morto através do Caminho dos Mortos. Uma vez concluído o ritual, os vivos deixam de apelar para a memória de seus parentes falecidos. Não se deve mais pronunciar o nome do defunto, tampouco travar contato com qualquer índice que remeta à sua presença. Do contrário, o duplo do morto permanece saudoso e atrelado aos vivos, causando um profundo estado melancólico que pode levar à doença e à morte. O apego dos vivos aos parentes mortos, ademais, impede o processo de desindividualização da pessoa, que precisa completar a travessia do Caminho dos Mortos para ter seu nome e status transformado. Assim como entre outras sociedades indígenas, o morto se tornará uma espécie de espírito antepassado, que poderá intervir no mundo dos vivos através dos corpos dos xamãs.

Por contraposição às sociedades africanas, como os Yorubá e os Fon, que cultuam parafernálias rituais associadas a ancestrais importantes de linhagens familiares, os povos indígenas concebem seus mortos como espíritos genéricos, dissociados das relações que outrora deram identidade ao vivente. Desta forma, a produção póstuma desses antepassados depende da negação de formas de figuração e de manutenção da memória dos mortos entre os vivos, em uma direção oposta à monumentalização funerária ocidental e africana. Não faria sentido, portanto, imaginar um arquivo infinito de pessoas falecidas, cuja identidade pode ser resgatada pela obra de arte. A dissolução da individualidade do morto, para os povos indígenas, tem por objetivo favorecer a relação cosmológica que garante o bem viver entre parentes e a conexão entre humanos e não humanos: espíritos antepassados ensinam condutas sociais, consolidam a ética do parentesco, intermedeiam relações com animais e outras presenças. Os processos de genocídio, ao contrário, eliminam pessoas e, com elas, seus próprios modos de existência e de pensamento. Vivemos ainda na sombra de tal violência, que se intensificou nos últimos quatro anos por conta da ação criminosa de determinados governantes. O anjo da história tem seu rosto dirigido ao passado, ensinava Walter Benjamin em suas famosas reflexões sobre o conceito de história. No Brasil, este anjo precisa também olhar para os lados; precisa enxergar sociedades que não pertencem apenas ao passado milenar de civilizações perseguidas pelo colonialismo, mas, também, a um presente complexo e fascinante.

** Lançamento de "A repetição" na livraria Megafauna, no dia 16 de março, às 19h. Será um papo entre Pedro e Thiago Rocha Pitta (autor da obra da capa), mediado pela jornalista Adriana Ferreira.

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