Entretempos

Curadoria de obras e exposições daqui e dali, ensaios entre arte, literatura e afins

Entretempos - Cassiana Der Haroutiounian
Cassiana Der Haroutiounian

Escrita entre mundos - Ensaio Palavra-Imagem

com Daniele John e Peter Sutherland

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Instalação "Forests and Fires"de Peter Sutherland, exclusivo entretempos
Instalação "Forests and Fires"de Peter Sutherland, exclusivo entretempos - David Johnson

Este é nossa terceira edição do Ensaio com o Clube do Livro de Literatura e Psicanálise, organizado pela psicanalista e crítica literária Fabiane Secches, O livro escolhido para leitura conjunta em março foi "Escute as Feras", de Nastassja Martin, publicado pela editora 34. A professora convidada do mês foi a Daniele John, psicanalista, doutora em Psicologia Clínica pela PUC-SP, mestre em Estudos Psicanalíticos pela Tavistock Clinic (Londres) e especialista em psicanálise pela Clínica da UFRGS. É professora do Curso de Formação em Psicanálise do CEP (Centro de Estudos Psicanalíticos) e autora do livro "Reinventar a Vida: narrativa e ressignificação na análise". É ela quem escreve o texto de hoje. Para a imagem, escolhi a instalação "Forests and Fires" do americano Peter Sutherland. Ele usa uma variedade de imagens de paisagens, de cadeias de montanhas a florestas decíduas, para evocar sensações incongruentes de admiração, perigo e sublime. Incorporando técnicas e materiais intrínsecos tanto à fotografia quanto à pintura, seu trabalho expande o potencial de ambas as mídias.

Instalação "Forests and Fires"de Peter Sutherland, exclusivo entretempos
Instalação "Forests and Fires"de Peter Sutherland, exclusivo entretempos - David Johnson

Escrita entre mundos

Um encontro. É esse o nome que Nastassja Martin escolheu dar para a topada quase mortal com a ursa que arrancou metade de seu rosto, enquanto fazia trabalho de campo com o povo Even, na Sibéria. Que ela nomeie assim o que outras pessoas poderiam chamar de ataque, batalha, acidente, contenda, imprudência, incursão autodestrutiva ou milagre marca uma posição e diz muito sobre o caminho que ela trilha na tentativa de elaboração que aconteceu. Que esse caminho tenha incluído a escrita é uma grande sorte nossa, seus leitores, presenteados com esse belíssimo livro, "Escute as feras", publicado pela editora 34 com tradução de Camila Boldrini e Daniel Lühmann.

"O que significa sair dos abismos onde reina o indistinto, escolher reconstruir outros limites com a ajuda dos novos materiais encontrados bem no fundo da noite indiferenciada do sonho? Bem no fundo da boca escancarada de um outro que não é você?", pergunta ela. Foi na boca da ursa que Martin viveu a radicalidade do encontro com o outro que, como antropóloga, sempre perseguiu. Embrenhar-se em sua cultura estrangeira, desafiar os limites que a separam dela, transitar entre os mundos até que suas fronteiras estejam embaralhadas. Como resume Debbora Battaglia, a antropologia seria o ofício de "fazer do infamiliar familiar e do familiar infamiliar".

E o que dizer quando esse outro não é sequer humano? "Os animais", diz a pesquisadora Maria Esther Maciel, sob o olhar humano, são signos vivos daquilo que sempre escapa a nossa compreensão". São, ao mesmo tempo que nossos semelhantes, "radicalmente outros".

O animismo, presente na cultura de muitos povos originários, caracteriza-se pela atribuição da existência de uma alma — e, portanto, também de uma intencionalidade — às formas da natureza, não apenas a plantas e animais, mas a elementos como fogo, água, ar e pedras. "A vida está em tudo e não há separação entre cultura e natureza", diz o pensador Ailton Krenak, ao abrir a "Conversa na Rede" (vídeo disponível no YouTube) que teve com Nastassja Martin. Ali, Martin relembra o momento em que percebe — pela primeira vez e não sem estranhamento — que o fogo era um elemento vivo. Conta como observava Dária, amiga do povo Even, dar de comer ao fogo, falar com ele, bem como cantar para o rio. "Mas ele é uma pessoa?", indaga atônita. Ao que a amiga responde, "não sei se é uma pessoa, mas ele escuta".

Interessa a Martin as possibilidades de diálogo que se abrem quando pensamos em uma interlocução possível com este outro que não é humano. Palavras endereçadas ao outro não são sem efeito. Elas importam. Krenak dirá que seu povo costuma conversar com o rio, negociar com ele para que não invada o local em que estão suas casas. E o rio responde, a seu próprio modo, como tem acontecido com os eventos climáticos extremos, que nada mais são do que uma reação ao nosso modo de viver. "Tudo o que estava silenciado agora está falando", diz Krenak, ainda que as pessoas brancas se recusem a escutar. O rio, dirá Krenak no livro "Ideias para adiar o fim do mundo", é uma pessoa e não um recurso, "ele não é algo de que alguém possa se apropriar". É através deste resgate do animismo que Martin — seguindo os passos do seu orientador Philippe Descola — propõe uma abertura para novos dispositivos de diálogo, nos quais todos esses saberes sejam respeitados em posição de horizontalidade. Uma conversa na qual o saber acadêmico não se sobreponha aos saberes dos povos originários.

"Experimentei em meu próprio corpo o que significa a cosmologia animista", disse Martin, ao chegar em Paraty para a Flip 2022. Mesmo antes do encontro com a fera, ela já havia recebido seu nome Even: mátukha, que quer dizer ursa. Sua forte conexão com os Even, com a floresta, com a montanha e com seus habitantes selvagens, era reforçada pela vivência de inúmeros sonhos. Tudo parecia levar-lhe ao encontro com o sua ursa. Martin já era esse ser que habita a fronteira entre mundos. Depois de marcada pelo urso, nela se abrirá a fenda que a torna, para sempre, um ser híbrido: Miêdka, metade humana, metade ursa; ou ainda, aquela que vive entre os mundos. "(...) meu corpo em forma de mundo aberto onde múltiplos seres se encontram".

Martin recebe tratamentos diversos, cirurgias, enxertos, placas na mandíbula; primeiro na Rússia, depois na França. Ironicamente, é na sua terra natal onde ela se sente mais estrangeira. Tão logo se põe de pé, decide pelo retorno às montanhas de Kamtchátka. Sabe que para curar-se de verdade precisa fazer o caminho de volta. Voltar ao local do acontecimento traumático, mas também ao familiar/estranho de sua família Even. Voltar para aqueles que "conhecem os problemas de urso", beber da leitura deles sobre o acontecimento — tão diferente da assepsia dos hospitais, o que tanto a agride, tão distinta das interpretações reducionistas da psicóloga hospitalar, da antiga terapeuta, ou mesmo de suas amizades e familiares na França. Voltar se tornou para ela algo imprescindível. Só Dária, "que também sabe ver entre os mundos", "ela que conhece os tormentos da existência melhor do que ninguém" pôde ajudá-la.

"Vi o mundo demasiado alter do bicho; o mundo demasiado humano dos hospitais. Perdi meu lugar. Procuro um entremeio. Um lugar onde me reconstruir. Esse recolhimento deve ajudar a alma a se reerguer. Porque será muito necessário construir essas pontes e portas entre os mundos", escreve Martin.

Contudo, há um momento em que inclusive os sentidos ofertados a ela pela cultura Even tornam-se insuficientes, até mesmo incômodos. Espera que Dária lhe "diga algo sobre esse nome que se cola à minha pele e que vem do mundo deles, não do meu". Mas, depois de tudo, qual seria, afinal, o seu mundo? Como lhe diz Ivan, filho de Dária: "Acho que você mesma não sabe o que a leva sempre a partir para lugares cada vez mais distantes". Ela concorda, "talvez seja algo da ordem do indizível", "como uma outra língua", "intraduzível". Mais tarde, ao se despedir de Dária, a amiga lhe pergunta, "você vai fazer o quê?". Martin responde: "Escrever".

A antropóloga mantinha um caderno para anotações mais técnicas, o diário de campo, de capa colorida, a que chamava caderno diurno. Escrevia também um diário íntimo, o caderno noturno, que não sabia definir muito bem o que ia dentro dele. Os dois cadernos, diz, representam a dualidade que lhe corrói.

É através da escrita, a posteriori, que ela ensaia dizer o indizível, contar o que lhe ultrapassa, falar das incertezas, criar sentidos, ainda que transitórios. É pela escrita que ela pode tentar "transformar" o acontecimento para torná-lo possível de acomodar, "comê-lo para então digeri-lo". É neste livro, neste magnífico livro, que, depois do encontro com a ursa, "o caderno preto se derramou pelos cadernos coloridos". A forma encontrada por ela, híbrida, parece ser a única maneira possível de narrar essa história verdadeira com jeito de fábula, que não coube no formato acadêmico tradicional, mas derramou-se nas páginas como se fosse ficção.

** O clube está com as inscrições abertas. Acesse o site: https://www.literaturaepsicanalise.com

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