Frederico Vasconcelos

Interesse Público

Frederico Vasconcelos - Frederico Vasconcelos
Frederico Vasconcelos
Descrição de chapéu Folhajus

Defesa do cidadão encobriu o corporativismo de Lewandowski

Gestão autoritária esvaziou o CNJ e inibiu a fiscalização da magistratura

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

São Paulo

"Vossa Excelência agora não vai dar lição à presidência com relação à leitura do regimento. O presidente tem poder de pauta (…) Eu sou presidente deste Conselho [Nacional de Justiça], presidente do Supremo Tribunal Federal e presidente do Poder Judiciário, ninguém vai me ensinar como é que eu vou levar as audiências e pautar as sessões deste Conselho".

[Ricardo Lewandowski, questionado pelo então conselheiro do CNJ Gilberto Martins]

Defesa do cidadão ofuscou o corporativismo no ministro Ricardo Lewandowski
Ministro Ricardo Lewandowski, durante sessão do Supremo Tribunal Federal - STF/Divulgação

O aspecto mais destacado nas homenagens a Ricardo Lewandowski, que se aposentou do Supremo Tribunal Federal, foi sua visão garantista. Essa ênfase ofuscou o viés corporativista e autoritário do ministro.

Ele abriu as portas do CNJ (Conselho Nacional de Justiça) ao lobby das associações de classe da magistratura. Dividiu o colegiado. Não foram julgados processos graves contra juízes.

Lewandowski se define como julgador independente; advogados o identificam como juiz corajoso e contra majoritário.

Pauta congestionada

Lewandowski sucedeu ao ministro Joaquim Barbosa. Como Barbosa antecipou a aposentadoria, ele atuou por um curto período como presidente substituto.

Na primeira sessão, ainda substituto, defendeu o imediato retorno à jurisdição de todos os magistrados afastados cautelarmente pelo CNJ.

A proposta foi rejeitada por maioria significativa.

Negligenciou o julgamento de processos disciplinares. Suspendeu as reuniões administrativas do colegiado, realizadas desde a fundação do CNJ.

Cortou gastos com viagens dos conselheiros, sob a alegação de que as despesas foram elevadas em 2013/2014. Barbosa confirmou que houve queda nos anos anteriores.

Ainda como presidente interino, suspendeu o sistema eletrônico, vigente desde a primeira composição do órgão, que permitia aos conselheiros o acesso prévio aos votos dos pares.

Isso agilizava os julgamentos pelo plenário no dia seguinte.

A Associação dos Magistrados Brasileiros (AMB) alegara que essas "sessões secretas" violavam a ampla defesa. Em 10 anos, a pauta nunca ficou tão congestionada.

Colegiado dividido

Em novembro de 2014, sete conselheiros protocolaram ofício a Lewandowski, preocupados com a redução dos julgamentos e o risco de esvaziamento do CNJ.

O documento foi assinado pelos conselheiros Luiza Cristina Fonseca Frischeisen, Guilherme Calmon, Rubens Curado Silveira, Gilberto Valente Martins, Saulo José Casali Bahia, Maria Cristina Peduzzi e Ana Maria Duarte Amarante Brito.

O CNJ julgava de 40 a 60 processos por sessão. A média caiu para 15 julgamentos.

Quando viajava, Lewandowski não convocava sessões que deveriam ser presididas por Cármen Lúcia. Na única sessão em que substituiu o presidente, ela julgou 50 processos. A média dele era de cinco por sessão.

Nancy Andrighi deixou a Corregedoria do CNJ sem que os cerca de 40 processos prontos fossem levados a julgamento pelo ministro Lewandowski.

"É preciso pôr fim ao imperialismo presidencialista vigente hoje no CNJ e em boa parte dos tribunais", afirmou o então conselheiro Rubens Curado da Silveira, em dezembro de 2015.

Curado advertiu para o risco de retrocesso com a demora de Lewandowki em colocar em julgamento a proposta de um grupo de trabalho sobre a regulamentação da Lei de Acesso à Informação nos tribunais.

"É a democracia às avessas no seio do órgão que deveria dar o exemplo", conclui Curado.

Investigações interrompidas

Em maio de 2014, Lewandowski tornou sem efeito o afastamento determinado –por unanimidade-- de duas desembargadoras do Pará, acusadas de negligência num golpe bilionário contra o Banco do Brasil.

Em fevereiro de 2016, a Segunda Turma do STF manteve – por unanimidade- a decisão do CNJ que determinou a aposentadoria compulsória das duas magistradas.

A Turma acompanhou decisão de Cármen Lúcia, que julgou improcedente mandado de segurança e revogou a liminar concedida por Lewandowski.

Em julho de 2014, durante o recesso do judiciário, Lewandowski concedeu liminar determinando que os desembargadores Mário Hirs e Telma Britto retornassem ao TJ da Bahia, do qual haviam sido afastados por decisão do colegiado do CNJ.

Os magistrados haviam impetrado mandado de segurança às vésperas do recesso. Seis meses antes, o relator, ministro Roberto Barroso, havia indeferido pedido para retornarem ao tribunal, diante do risco de constranger testemunhas e destruir provas.

Correição realizada em 2013 identificara irregularidades e erros nos cálculos de precatórios que causaram prejuízo ao erário avaliado em R$ 448 milhões.

Em novembro de 2017, por maioria, o CNJ absolveu os desembargadores. O então corregedor João Otávio de Noronha afirmou "não ter encontrado provas de que os magistrados agiram de má-fé ou desvio voluntário de conduta, em proveito próprio ou de terceiros".

Casa dos magistrados

Joaquim Barbosa foi duro no trato com os representantes das entidades da magistratura. Foi uma reação à iniciativa da AMB, Ajufe e Anamatra que ofereceram queixa-crime contra a então corregedora Eliana Calmon, sob a alegação de quebra ilegal de sigilo bancário e fiscal de juízes e familiares. O processo foi arquivado.

Em encontro no gabinete do presidente do STF, os dirigentes das entidades foram tratados como "líderes sindicais".

"Os senhores não representam o CNJ. Os senhores não representam a nação. São representantes de classe", disse Barbosa.

Em dezembro de 2011, um dia antes do recesso, Lewandowski concedeu liminar e interrompeu inspeções iniciadas pelo CNJ a partir de informações do COAF, para examinar evolução patrimonial de magistrados e servidores em 22 tribunais.

Despachou na ausência do ministro Joaquim Barbosa, a quem foi distribuído o mandado de segurança. As associações de juízes alegaram quebra ilegal de sigilo bancário e fiscal de mais de 200 mil pessoas.

Lewandowski mudou o tratamento dispensado pela presidência do CNJ às entidades da magistratura.

Ao saudar o então presidente do TJ-SP, desembargador Paulo Dimas Mascaretti, durante uma sessão, Lewandowski disse que o CNJ "hoje é a casa dos magistrados".

"Fique à vontade para considerá-la como sua casa. Seus pleitos serão bem recebidos", afirmou a Mascaretti, a quem se referiu como "o grande líder associativista" e "antigo companheiro de classe".

Em abril de 2015, Lewandowski foi criticado pela minuta da nova Lei Orgânica da Magistratura (Loman) que apresentou aos colegas.

"Na sugestão mais bizarra, pela arrogância e pelo corporativismo, um magistrado só poderia ser interrogado por outro magistrado de instância equivalente ou superior", afirmou a Folha em editorial.

Lewandowski lembrou que na carreira militar a hierarquia também é respeitada.

"Não se tem ideia nem notícia jamais na História de nossas Forças Armadas de sargento que interrogasse coronel", disse.

Pauta corporativa

Sem submeter a decisão ao Plenário, Lewandowski criou dois conselhos consultivos para assessorar sua gestão. Um reunia presidentes de associações de classe da magistratura; o outro, presidentes de tribunais de Justiça (uma entidade de caráter privado).

A advogada Gisela Gondim, ex-conselheira do CNJ indicada pela OAB, escreveu: "Na prática, e com o devido respeito, o presidente trouxe para dentro de sua gestão o lobby direto dos juízes, que poderão fazer pressão para pautar e tirar de pauta os temas que lhes interessam".

"O CNJ é do Brasil, não dos seus juízes", concluiu Gondim. Cármen Lúcia disse que "o CNJ é a casa do cidadão, um órgão estatal".

Em editorial, a Folha considerou a criação dos conselhos um retrocesso: "Não só o órgão criado para fiscalizar os magistrados corre o risco de perder os poderes para tanto, mas também os magistrados podem ganhar poderes para fiscalizar esse mesmo órgão".

"Dificilmente um líder sindical agiria com tanta desenvoltura", concluiu.

Na gestão de Joaquim Barbosa, as sessões começavam pela manhã e entravam no início da noite (como ocorre hoje). Com Lewandowski, eram realizadas apenas à tarde.

Na primeira sessão como presidente do CNJ, Cármen Lúcia anunciou que divulgaria as pautas de todas as sessões com um mês de antecedência, para facilitar o deslocamento dos advogados e a elaboração dos votos.

"Aqui não haverá nada sem exposição ao cidadão. Tudo que for feito será de portas abertas", disse.

Piruetas e convescotes

Por recomendação de Lewandowski, o CNJ decidiu tornar sigilosos os cachês pagos a magistrados por palestras proferidas a convite de administrações estaduais, associações e empresas privadas.

Essa atividade foi equiparada ao magistério, "numa pirueta interpretativa", manifestação de "corporativismo explícito e de prática nada republicana", como definiu a Folha, em editorial.

Desembargador do TJ-SP, Lewandowski foi sócio-fundador do Jurisul (Instituto Interamericano de Estudos Jurídicos sobre o Mercosul), entidade criada pelo empresário Mario Garnero, do grupo Brasilinvest.

Em 1998, Garnero foi anfitrião de uma caravana de magistrados à Argentina. Era alvo de ação penal anulada pelo STF no ano seguinte. "Você não vai perguntar se alguém eventualmente tem processo", disse o ministro.

Edson Vidigal, então ministro do STJ, relator de uma ação cível contra Garnero, viajou à Argentina com a mulher. Vidigal disse que só soube quem promovia o encontro quando Garnero discursou.

Em novembro de 2011, Lewandowski e outros ministros de tribunais superiores participaram de seminário num hotel cinco estrelas, no Guarujá, a convite da Confederação Nacional de Seguros, uma instituição privada. O evento começou numa quinta-feira e prolongou-se até domingo.

Lewandowski participa de caravanas para seminários em Portugal promovidos pelo IDP, instituto do ministro Gilmar Mendes.

Em julho de 2019, reportagem de Mateus Coutinho, na Crusoé, revelou que Lewandowski é presença frequente nos eventos do Ipeja (Instituto de Pesquisa e Estudos Jurídicos Avançados), presidido por Rubens Lopes da Cruz.

Em 2014, na cerimônia de encerramento de seminário em Coimbra, Lewandowski, afirmou:

"Gostaria de agradecer ao Ipeja, em nome do professor Rubens Lopes, que mal inicia suas atividades, mas que já promete ser um dos grandes centros científicos de nosso país, o Brasil".

O bom combate

No encerramento de sua gestão na presidência do STF e do CNJ, Lewandowski foi cumprimentado pelo então decano Celso de Mello, que fez a saudação em nome do colegiado.

Mello disse que a atuação de Lewandowski nos dois órgãos foi "firme, competente e motivada por superiores razões de interesse público".

Lewandowski afirmou que considera como um dos marcos mais importantes de sua gestão a ampliação dos canais de comunicação com os membros da Corte e do CNJ, com o Poder Legislativo e Executivo, advogados, Ministério Público, Defensoria Pública, juízes de todos os ramos e graus de jurisdição, associações e sindicatos de servidores.

"Se há uma marca pela qual eu gostaria de ser lembrado é de ter realizado uma gestão inclusiva, democrática e participativa", disse.

"Eu tenho a convicção íntima de que combati aquilo que eu reputei ser o bom combate. Eu concluí a minha missão e, apesar de todos os percalços, mantive a fé nas pessoas e nas instituições".

O blog perguntou ao promotor Gilberto Martins, ex-procurador geral de Justiça do Pará e um dos maiores críticos da gestão Lewandowski, como era o seu relacionamento com o ministro.

"O relacionamento é muito respeitoso. Nós divergimos no campo da teoria e das opiniões. Em nenhum momento existiu algum tipo de tratamento desrespeitoso ou de forma hostil. Esse respeito não me impede, de forma nenhuma, de divergir de suas opiniões e ideias. O presidente é uma pessoa extremamente polida."

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.