Haja Vista

Histórias de um repórter com baixa visão

Haja Vista - Filipe Oliveira
Filipe Oliveira

Muitas flores e alguns espinhos na nova novela da Globo

Assistir uma abertura de novela com audiodescrição e referências sutis e sensíveis ao universo da deficiência visual emociona

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São Paulo

Não sou espectador de novelas, mas recebi a notícia de que a Globo faria o folhetim "Todas as Flores" para seu serviço de streaming com uma protagonista cega com muito interesse.

Mais especificamente, com uma mistura insolúvel de entusiasmo, desconfiança e incômodo.

A empolgação veio pelo potencial que uma obra de João Emanuel Carneiro, autor dos sucessos "Avenida Brasil" e "A Favorita", teria de tornar a cegueira uma pauta de destaque no debate nacional.

Seria um momento único para jogar luz sobre desafios enfrentados por pessoas cegas no dia a dia, quebrar preconceitos e mostrar potencialidades.

Haveria oportunidade de se criar mais espaço em programas de entretenimento e jornais para que pessoas com deficiência visual explicassem de maneira objetiva como resolvem uma série de desafios do dia a dia sem precisar da visão. Milhões aprenderiam o que é braille, como pessoas cegas podem ser ajudadas no cotidiano e como respeitar a autonomia delas. Muitos passariam a ver com naturalidade o fato de que a pessoa que não enxerga pode usar tecnologia, estudar, trabalhar, namorar, se casar, ter filhos, entre mil outras possibilidades.

Por fim, as primeiras informações sobre "Todas as Flores" já davam conta de que seria a primeira novela da Globo com audiodescrição. Este recurso permite, a partir da inserção de uma narração entre as falas, que pessoas cegas e com baixa visão recebam informações sobre cenários, ações e aparência dos personagens.

A Globo inclui há anos esse recurso nos filmes que exibe na televisão, em uma faixa de áudio alternativa. Porém nunca havia feito isso em um projeto tão importante e popular como uma novela.
Pior. Seu aplicativo, o Globo Play, além de não disponibilizar nada dessa audiodescrição já produzida para a televisão aberta, também vinha muito atrás em relação a acessibilidade na comparação com Netflix, Apple TV e Amazon (que já oferecem conteúdo audiodescrito em diferentes volumes).

Quando a expectativa é altíssima assim, o medo de que tudo vá pelo caminho oposto ao desejado é grande.
E se Maíra, a tal personagem que tanta esperança trazia, seguisse a risca o estereótipo de cega que queremos deixar para trás? E se fosse mais uma mulher dependente, frustrada, que vive em função de uma improvável cura de sua cegueira ou de um príncipe abnegado disposto a cuidar dela? Para piorar, poderia vir sempre acompanhada de uma trilha melodramática a cada aparição, indubitavelmente chorosa.

Mas deixemos a desconfiança para tratar do incômodo. A escalação de uma atriz cega para interpretar a moça que não vê na novela frustrou a mim e enfureceu ainda mais a muitas pessoas cegas e com baixa visão, desde antes do início do folhetim.

Corta para a estreia.

Eu, que não usava o Globo Play por sua acessibilidade ruim, tive um pouco de dificuldade para conseguir clicar no ícone da novela na tela inicial e me atrapalhei bastante para ligar a audiodescrição. Mesmo assim, minha impressão é que o serviço melhorou e fiquei satisfeito ao acionar a acessibilidade sozinho, ainda que o caminho esteja um pouco acidentado. Fico esperançoso de que mais ajustes virão em breve.

Resolvidos os problemas técnicos, dei o play.
Eu e outras pessoas com deficiência visual ficamos emocionados ao ouvir pela primeira vez uma abertura de novela audiodescrita.

Além da alegria de nos sentirmos um pouco mais incluídos, colaboraram para isso a beleza da canção "As Rosas Não Falam", de Cartola, e a delicadeza das imagens narradas, que destacam uma boa variedade de flores, mãos levando uma delas até o rosto para sentir o aroma, dedilhando um violão, tocando partes de um corpo e se entrelaçando.

Foram escolhas sutis e certeiras para tratar da cegueira. As mãosfalam de modo especial com quem não enxerga, por ser nossa principal ponte para tocar e conhecer o outro e o mundo a nossa volta. Música e aromas também costumam ser especialmente importantes para quem tem deficiência visual.

Para fechar com chave de ouro, o título da novela aparece também em braille. Finalmente, estamos na Globo!

A bem da verdade, a história que foi contada a partir daí não me cativou. A violência de toda a história, a maldade de algumas personagens para mim deixou para trás qualquer rastro de verossemelhança me fizeram ter de me esforçar para chegar ao fim do capítulo de abertura.

Mas minha opinião em relação a isso importa quase nada.

O que vale mesmo é que nossa heroína, Maíra, sabe se locomover usando uma bengala, termina o primeiro capítulo sambando e dando um beijo na boca daqueles de novela, se me foi bem descrito. Ela é capaz de trabalhar em uma farmácia, lê em braille e lida de modo maduro com questões complexas (a doação de medula para a irmã).

A audiodescrição também foi excelente e fundamental. Já no primeiro episódio foram muitas cenas que seriam impossíveis de se compreender sem o recurso.

Entre elas a primeira aparição da protagonista tomando banho na cachoeira, um crime cometido pela personagem de Regina Casé com uma almofada, o olhar de desconfiança de Vanessa a sua irmã Maíra enquanto a segunda tomava banho,
modelos descendo de rapel durante um desfile, entre outras.

Todas essas foram cenas que não traziam explicações nas falas a respeito do que aconteciam nem permitiam uma compreensão razoável só pela sonoplastia. Ou seja, muito poéticas ou emocionantes, mas péssimas para se ver de olhos fechados sem acessibilidade.

Mas, para não dizer que não falei de espinhos...

Entendo uma atriz que enxerga querer fazer o papel de uma pessoa cega. O artista quer se transformar em outras pessoas, exercitar ao máximo a empatia, se desafiar, incorporar novos gestos. Aprender a se mover sem a visão, a passar a mão pela mesa para encontrar o copo, ouvir mensagens pelo celular como faz uma cega talvez seja viver tudo isso de forma plena. E acredito que sophie charlotte conduzirá bem o papel que recebeu até o final da trama e receberá aplausos justos.

Também entendo que a produção da novela prefira trabalhar com um talento conhecido, testado, que vai naturalmente atrair fãs e patrocinadores.

Mas há uma questão que precisa de reflexão.

Existem bons atores cegos trabalhando no Brasil. Qual a chance de um ator ou atriz cega fazer uma personagem que enxerga na novela? Nenhuma.

Então parece justo esperarmos que, na hora de um personagem cego aparecer em uma trama de destaque, a gente faça todo o possível para dar licença para que um artista cego incorpore esse personagem.

Em defesa da Globo, temos profissionais com deficiência visual em papéis coadjuvantes, na figuração e na equipe de produção de "Todas as Flores". Deveria, mas não é comum.

Mas seguiremos esperando a oportunidade de criar uma estrela de novela que é como a gente, que vira inspiração para meninos e meninas que não veem e mostre que podem chegar onde quiserem. E,, claro, que arrase na interpretação. AInda não conquistamos esse lugar e, depois de perdermos uma oportunidade dessas, ainda deve levar muitos anos para chegarmos lá, infelizmente.

Por enquanto, o balanço é que a emissora produziu algo bastante bom, mas bem que poderia ser sensacional.

Por tudo isso, seguirei acompanhando as cenas dos próximos capítulos.

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