Haja Vista

Histórias de um repórter com baixa visão

Haja Vista - Filipe Oliveira
Filipe Oliveira

'Aula de cego' deveria estar no currículo de escolas e faculdades

Dona Laura comemorou ao me conhecer, porque teria como aprofundar o que aprendeu no curso

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São Paulo

Conversava por mensagem de texto com a dona Laura, uma candidata a ser minha aluna de música que veio de um grupo de WhatsApp.

Sugeri preço, data e local. Parecia estar tudo indo bem, até que ela perguntou o óbvio: "Você sabe mesmo me ensinar a tocar piano".

Não que eu tivesse uma legião de alunos formados tocando em Viena ou com passagens como solistas na Filarmônica de Berlim. Mas deixei minha insegurança de lado e destaquei meus pontos fortes e o que talvez fosse um problema para ver se colava ou se encerrava o assunto logo: "Tenho diploma em música e experiência com partituras convencionais e em braille".

Sem fazer cerimônia, ela me perguntou: "Você é cego, professor?". Didaticamente, expliquei que hoje em dia conseguia ver bem pouquinho, mas não o suficiente para enxergar partituras ou qualquer coisa escrita em um papel. Mesmo assim, poderia achar um jeito de ensiná-la e ela não precisaria aprender em braille.

Essa era a hora em que eu esperava que ela desaparecesse ou pedisse mais uma série de qualificações para ter certeza de que não ia ficar a ver navios querendo aprender a ler música com um professor que não enxerga as notas.

Nada menos parecido com o que aconteceu de verdade:

"Que demais! Eu já fiz aula de cego. Vou aprender um monte, matar dois coelhos com uma cajadada só", escreveu Dona Laura.

Claro que logo pensei que eu teria de aprender a ser um professor mais inclusivo, caso fosse em frente com a ideia de ensinar uma aluna assim excêntrica. Afinal, aula de cego? Eu lá sou matéria de sala de aula? Fiquei imaginando um livro mostrando cegos em seu habitat natural, andando no escuro, se guiando por sons que ninguém mais escuta, encontrando alimentos a partir do cheiro...

A conversa se alongou por mais de meia hora. Já nem ligava mais se iria conseguir uma nova estudante, estava mesmo curioso para ver onde aquele papo ia dar. Entendi que a tal aula de dona Laura era uma atividade em um curso de educação física ou algo assim no qual ela aprendeu que, para guiar, você pergunta se a pessoa com deficiência visual quer ajuda e, se for o caso, deixa ela segurar no seu braço.
Depois ela quis saber como eu perdi a visão, se eu andava sozinho, como meus pais lidaram com isso, falou que criar filhos era um desafio muito grande e minha mãe devia ser uma mulher muito forte. Não parou mais até eu dizer que estavam me chamando para jantar. Para terminar, dona Laura mandou um beijo para minha mãe, que ela não conhecia.

Saí daquela conversa meio zonzo, meio receoso de que ela decidisse fechar negócio.

Mas, pensando depois, percebi que até que dona Laura tinha razão. Por que tão poucos cursos ensinam o que é particular na vida de uma pessoa com deficiência? A consequência desse desconhecimento é que raríssimas pessoas dizem "Que demais!", em vez de ficarem receosas quando encontram um profissional com deficiência para atendê-las ou mesmo para se relacionar ou conversar em um dia qualquer.

Nossos pedagogos, ou talvez o Chat GPT, podem dar um nome mais formal e que dê credibilidade para esse curso de cego, surdo, com deficiência física e intelectual. Mas a verdade é que existiria um mundo muito melhor se todos fossem iguais à dona Laura.

Teríamos professores que entendem como funciona a escrita em braille e que não ficariam receosos ou deixariam de dar atenção adequada ao aluno cego que chega em sua sala de aula.

haveria mais empregadores que entendem o que é navegar na internet, escrever e ler planilhas em um software leitor de telas e definiriam , junto ao funcionário, quais tarefas mais adequadas para aumentar a produtividade dele.

Encontraríamos mais colegas que são empáticos ao receber uma pessoa no espectro do autismo para trabalhar na mesma equipe e criariam um ambiente que proporcione o crescimento de todos.

Criar uma sociedade em que, do ensino infantil à pós-graduação, todos pensam a respeito das potencialidades e dos desafios daqueles que não tem um sentido, um membro, um movimento ou que pensam de um modo diverso teria como consequëncia permitir que eu e outros milhões de pessoas com alguma deficiëncia não tivéssemos mais de temer a incompreensão ou a rejeição de possíveis alunos, clientes, colegas ou chefes.

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