Haja Vista

Histórias de um repórter com baixa visão

Haja Vista - Filipe Oliveira
Filipe Oliveira

Entendi, após trombadas e tropeções, que preciso aprender a desacelerar

É hora de deixar de lado o celular nas caminhadas e aceitar o rítmo que minha deficiência pede

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São Paulo

Muitas vezes a vida coloca alguém em nosso caminho para nos dizer algo importante, desde que estejamos prontos para entender as mensagens mais sutis.

A mensageira no meu caso foi uma colega de trabalho. Provavelmente trazia um bilhete dos meus anjos da guarda, que já faziam sua quinta ameaça de greve do ano, tanto serviço que ando dando para eles.

Aconteceu em um dia em que ela me conduzia durante uma atividade que faríamos juntos na empresa. Na volta, ao chegarmos em nosso escritório depois de cumprida a missão, ela deu o recado disfarçado de gracejo: "Eu sempre sei quando você está chegando na sala. É só prestar atenção no barulho da sua batida na hora de atravessar a porta".

Claro que entrou por um ouvido e saiu pelo outro. Afinal, a culpa e o azar eram da porta, que só se abria pela metade e me confundia em relação ao espaço que eu tinha para passar. De castigo, ela levava minhas bengaladas, ombradas, cotoveladas e pontapés.

Se o som de harpas não foi o suficiente para que eu escutasse, hora de a guarda angelical fazer soarem as trombetas. Ou talvez só de dar uma sumidinha para eu ver o que acontece.

Dias depois, quando dei uma cabeçada no muro daqui de casa, quem perdeu fui eu, não o muro. Tanto em termos físicos, já que levou uma semana para passar o roxo da testa, quanto financeiros, porque será preciso comprar uma nova armação para substituir a que está com uma das pernas despencando e sem chances de conserto.

Teimoso, ainda pensei que foi uma casualidade. Culpa da pressa, do sono, do excesso de confiança no caminho muito conhecido, do Uber que estava chegando e do qual eu tentava ouvir o nome do motorista. Sempre tem uma desculpa para dizer que, dessa vez doeu mais, mas acidentes assim fazem parte de quem tem de chegar logo.

Não pude dizer a mesma coisa no final de semana, quando, ao terminar de ouvir uma mensagem no WhatsApp, não sabia mais em que ponto de um caminho amplamente conhecido eu estava. Ia para frente, não chegava ao meu destino. Voltava para trás, não encontrava o ponto de partida para reorganizar meus mapas mentais e começar tudo novamente.

Achei que precisaria até engolir o orgulho e telefonar para alguém que pudesse me enviar ajuda. Só não foi preciso porque escutei barulho ao longe, chamei seja lá quem estivesse ali e consegui companhia que me devolvesse ao meu rumo.

Esses sustos me fizeram, finalmente, pensar que talvez não desse para manter uma horda de vinte guardiões celestes trabalhando de domingo a domingo sem descanso. passei a refazer na mente minha rotina, observando cada passo. Lembrei de minha casa e da cômoda que fica na sala e na qual sempre dou um encontrão dolorido com a coxa; da porta camarão onde já bati a testa e sempre dou ombradas; da porta de vidro da cozinha que não sei como não estourei ainda com uma joelhada ou um pontapé.

Analisando do meu despertar até a hora de dormir, meu dia todo é preenchido por tropeções e trombadas. Raramente acontece algo grave, não ralo feio meu joelho desde os tempos em que assistia desenho na TV Cultura e pouquíssimas vezes chego a perder o equilíbrio e me esbofetear no chão. Talvez daí minha relutância em admitir que não estou andando lá muito bem.

Mas agora não dá mais para fingir que não entendi o que preciso fazer: tenho que andar mais devagar e menos distraído.

Acontece que mudar o rítmo é muito mais difícil do que prometer isso publicamente e por escrito. Sentir o que há abaixo dos pés antes de soltar o peso, usar a bengala direito e andar num passo que, caso esbarre em algo, não machuque, requer para mim um nível muito maior de concentração.

Homem com deficiência visual anda nas ruas de Nova York com uma bengala - Sara Krulwich/The New York Times

Fazer minhas atividades rápida e estabanadamente é muito mais fácil, são mais de 30 anos vivendo dessa forma, o cérebro e as pernas estão absolutamente acostumados a ir em frente e não temer. É provável que esse padrão de movimentos mais velozes do que o recomendável seja resultado de uma perda visual lenta, que demorou mais de décadas e provavelmente segue acontecendo. Em outras palavras, me movimento de modo ligeiro como quando enxergava mais, mas não tenho nem a visão bem calibrada para poder fazer isso com segurança, nem uma sensibilidade mais desenvolvida em outros sentidos que teria alguém que já nasceu sem enxergar e se habituou mais a essa condição. Afinal, tem muito cego correndo por aí, não quero generalizar e dizer que todos precisam andar devagarinho.

Vai levar tempo até eu estar mais tranquilo e seguro com uma passada mais para bossa nova do que para escola de samba. Mas uma medida pode ser adotada de imediato. Chega de andar falando ao celular. Seria justo que eu tomasse uma multa a cada vez que voltasse a cometer essa infração.

Nosso estilo de vida atual cobra agilidade, capacidade de gerenciar várias tarefas simultâneas e produtividade. Não vou negar que eu goste dessa adrenalina toda e me empolgo buscando ser o mais ágil e eficiente em tudo. Mas é hora de reconhecer e aceitar meus novos rítmos e compassos para que, com calma e sem nenhum arranhão, eu possa ir muito mais longe.

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