Haja Vista

Histórias de um repórter com baixa visão

Haja Vista - Filipe Oliveira
Filipe Oliveira

Bengala é fundamental, mas poderíamos pensar em novos equipamentos para pessoas com deficiência visual

Caminhar com o Babimóvel foi mais confortável do que eu jamais imaginei

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São Paulo

É difícil saber quem está ajudando a quem quando estou com a Bárbara. Eu forneço o equilíbrio para que ela possa andar, deixando a segurar minha mão, enquanto ela me dá a direção, informando para onde devemos andar e quais os obstáculos.

Vamos bem devagarinho, com cuidado para não cair e atenção para não confundir direita com esquerda —algo que, aliás, metade das pessoas que querem me dar uma indicação de caminho fazem. Quem olha de longe vê minha bengala e acha que estou precisando de ajuda e, quando se aproxima, vai parar do outro lado da minha amiga para dar ainda mais segurança a ela.

Mas se eu tenho minha bengala para andar sozinho, ela também tem o Babimóvel para seguir seus próprios passos. Com o andador, ela vai ao trabalho, passeia, viaja. Eventualmente uma cadeira de rodas também a ajuda. Nas aulas de teatro, por exemplo, não ter de segurar o Babimóvel dá mais liberdade para que faça gestos mais expressivos, já me explicou minha amiga que não tem rodinhas nos pés, mas está sempre acompanhada de algum equipamento que tenha para poder ir para todo canto.

Era justamente para o teatro que iríamos após almoçarmos juntos, para assistir a uma peça na qual ela ainda seria minha audiodescritora.

Dois problemas. Ela faria uma viagem para Campinas em seguida, então, mesmo que eu estivesse lá para dar a mão, teria de levar o Babimóvel junto. E minha casa não é nada amigável para andadores, já que são mais de dez degraus entre meu apartamento e o térreo.

Decidi ir primeiro, descer a escada e já deixar o Babimóvel no portão, o que incluiria uma caminhadinha de mais uns 50 metros. Depois voltaria para buscar minha amiga. A seguir, desceríamos os degrau e faríamos a caminhada bem devagarzinho.

Como estaria com as mãos ocupadas empurrando o andador, deixei a bengala em casa. Afinal, o caminho era conhecido, eu levaria o equipamento com tranquilidade e acharia como voltar de volta usando a ponta dos pés para me guiar até a porta do prédio e subir a escada, algo que eu tinha feito bastante meio na intuição até fazer minhas aulas de orientação e mobilidade, sobre as quais escrevi aqui.

Enquanto cumpria minha tarefa de amigo, percebi uma sensação gostosa e inesperada. Empurrar o andador da minha amiga era leve, fácil, não exigia o movimento de virar o pulso de um lado ao outro para rastrear o chão com a bengala e, além de tudo, pareceu muito seguro. Afinal, o equipamento ficava quase na altura do meu peito e, dali para baixo, nada me atingiria.

São muitos os estigmas em relação ao uso da bengala por pessoas com deficiência visual. A começar pelo nome, que acaba confundindo e fazendo parecer que a pessoa tem alguma limitação motora ou que usa um equipamento supostamente para idosos. Não quero parecer ter alguma implicância com a bengala e estar criando mais resistência de pessoas com deficiência visual a ela. Até escrevi sobre a importância dela e os desafios de aceitação que ela sofre aqui. Mas será que não chegou a hora de pensar em algo mais sofisticado?

Afinal, a bengala deve ter sido inventada a milhões de anos pelo primeiro cego, tal sua simplicidade, já que não passa de um bastão para ampliar o cumprimento dos barços e tocar o caminho. No Século passado, foram desenvolvidas algumas técnicas para seu uso mais efetivo, como direcionar o bastão para o lado oposto ao do passo que se está dando, e se criaram rodinhas para colocar nas pontas e deslizar melhor. Mas, fora esses incrementos e a implementação de novos materiais, o princípio é o mesmo.

Mesmo que uma tecnologia antiga, ela segue fundamental. Mas todo cego já se machucou com coisas que a bengala não pegou, com bancos que nos acertam a canela, lixeiras que pegam bem na boca do estômago ou orelhões nos quais batemos o rosto em cheio. Por que não pensar em algo que também deslize suavemente, permita um andar na velocidade desejada e dê mais proteção?

O maior risco em algum equipamento para locomoção de cegos baseada no andador que consigo pensar seria o de atingir outras pessoas. Nesse caso, acredito que a tecnologia ofereceria soluções simples. Já existem projetos de bengalas tecnológicas, com GPS e alguma forma de sensor para pegar obstáculos que a bengala tradicional não encontra. Seria fácil para nossos engenheiros desenvolver um alarme por som ou vibração para o usuário do equipamento para que ele diminua o passo quando estiver a determinada distância de um objeto, uma parede ou uma pessoa, talvez até um dispositivo que acione um freio caso de risco. Já tem até boné tecnológico avisando sobre obstáculos, que infelizmente, ainda não testei, nem o funcionamento, nem como fico com o adereço moderno.

Outro ponto fraco do "andador para cego" seria o mesmo enfrentado por minha amiga: a pouca eficiência na hora de descer degraus. Nesse caso, o andador comum já tem uma solução que eu não me atentei naquele domingo em que tive minha primeira caminhada com o Babimóvel: O equipamento vem com uma bolsinha em que se pode deixar uma garrafa d'água, uma blusa e, vejam só, uma bengala. Penso que daria para sacá-la para medir o tamanho da descida ou subida e, devagarzinho, ir subindo ou descendo de um em um com o equipamento na outra mão. Mas, melhor mesmo, é que se fizessem rampas, claro.

Como sou meio estabanado e não me atentei à possibilidade de levar a bengala comigo bem guardada, voltei de mãos vazias para casa, agora sem qualquer proteção. Caí da calçada em cima da bicicleta do vizinho. Ainda hoje lembro do perigo da falta de um equipamento adequado, seja bengala, seja algum novo dispositivo mais avançado, para caminhadas, agora que dói meu mindinho a cada palavra digitada neste texto.

Homem com deficiência visual desce escadas de estação de metrô na China usando uma bengala - Jade GAO/AFP

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