Haja Vista

Histórias de um repórter com baixa visão

Haja Vista - Filipe Oliveira
Filipe Oliveira

Associação entre deficiência e superação é resultado de injustiças que precisam ser enfrentadas

A verdadeira superação é aquela que derruba obstáculos para uma sociedade plural

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São Paulo

Pouca coisa acaba mais rápido com a credibilidade de quem decide falar sobre inclusão e pessoas com deficiência do que uma derrapada no vocabulário.

Se você deixar escapar um "portador de deficiência" ou "pessoa com necessidades especiais", quem está a par do assunto já nota que faltou uma pesquisa básica para saber que esses termos já foram superados. Se, pior ainda, escapar um "portador de necessidades especiais", nada que você diga depois irá superar essa gafe.

A própria superação, uma palavra tão corriqueira no cotidiano e que pode passar despercebida na maior parte do tempo, precisa ficar longe de cadeirantes, cegos, surdos e pessoas com deficiência intelectual.

Demorei para entender bem a razão desse divórcio linguístico. Na minha infância e adolescência, deficiência e superação estavam sempre de mãos dadas, com música lenta de violinos de fundo e levando todos as lágrimas. Isso não era bonito?

Eu, que tenho deficiência visual, não posso dizer que superei muita coisa para chegar aqui? Não é para ter orgulho por ter conseguido estudar e trabalhar apesar das dificuldades?

Assumir que não há nada para superar significaria concordar que as condições são justas, as oportunidades bem distribuídas, os caminhos livres e os auxílios necessários disponíveis.

Não é o caso. Escolas e faculdades não costumam estar preparadas para receber pessoas com deficiência, o mercado de trabalho é restrito e as companhias nem sempre dispostas a se adequar em relação a adaptações necessárias para cada pessoa, as ruas são feitas para o automóvel e há pouca proteção para quem não se adequa a esse mundo feroz. Mesmo para mim, que tive também uma série de privilégios que tornaram a vida com uma deficiência mais suave do que para a maioria com condição semelhante, enfrento desafios que a pessoa que enxerga não enfrenta.

Por que, então, nós, pessoas com deficiência, passamos a fazer careta quando alguém diz que somos um exemplo de superação? Por que ficamos ofendidos quando nos dizem que se sentem envergonhados de reclamar de seus problemas quando veem a gente levando nossas vidas com bom humor, algo que já escutei dezenas de vezes?

Penso que o primeiro erro do discurso da superação é que ele frequentemente mira no alvo errado.

É comum ouvirmos que alguém superou a cegueira, a surdez, a limitação nos movimentos para ter uma família, um emprego, um diploma. Mas há um problema nessa frase. Ninguém superou sua deficiência. Ela continua ali e não deveria ser nenhum problema a ser superado. Dizer que somos um exemplo por sorrir mesmo tendo uma deficiência parece um elogio, mas, na verdade, significa outra coisa. Quer dizer que o outro vê nossa situação física ou sensorial como algo horrível e somos incríveis por sorrir mesmo assim. Mas agora muitas pessoas com deficiência já endendem que não há nada de errado com elas e detestam ser colocadas novamente na posição de pessoas de quem se deve ter piedade.

Provavelmente houve uma série de superações na vida da pessoa com deficiência. Pode-se ter superado o preconceito, a falta de acessibilidade ou até suas próprias metas pessoais.

Mas basta direcionar a superação para a questão certa, explicar quais os problemas reais que foram superados para ´podermos readmitir a superação em nossas prosas e versos sobre deficiência?

Penso que a palavra já foi tão desgastada pelo emprego errado que não valhe a pena, teríamos mais mal-entendidos e confusão do que ganhos com esse retorno. Mas não significa que devemos deixar de destacar feitos de quem conseguiu grandes conquistas, mesmo em um ambiente hostil para se viver com uma deficiência.

Pelo contrário, acredito que devemos aprender com histórias de pessoas que, mesmo contra as adversidades impostas pelas condições atuais conseguiram grandes feitos. Esses relatos servem para educar e mostrar que pessoas com deficiência tem muito potencial e inspiram outros na mesma condição a fazer o mesmo.

Por outro lado, a gente só supera calçada esburacada, falta de livro em braille, aplicativo sem acessibilidade para cegos ou gente preconceituosa porque existem calçada esburacada, falta de livro em braille, aplicativo sem acessibilidade para cegos ou gente preconceituosa.

O perigo de nos acostumarmos com a percepção de que pessoas com deficiência são pessoas grandiosas que superam tudo é esquecer que, para a maioria delas, os obstáculos são insuperáveis. É assumir mesmo sem querer que não é urgente darmos condições melhores, porque alguns conseguem chegar lá mesmo assim.

Histórias de superação continuarão nos emocionando. Gostamos de ouvir histórias sobre pessoas que venceram condições adversas e nos movem para alcançar nossos objetivos, o cinema e a literatura estão cheios delas. Mas, quando ouvir uma bela história de alguém com deficiência, se pergunte sempre se é justo que a pessoa precisaria mesmo tudo o que enfrentou ou deveríamos ter oferecido uma estrada menos esburacada.

O certo não deveria ser as pessoas com deficiência terem de superar algo, e sim nós superarmos os obstáculos para uma sociedade plural.

Em tempo, a etiqueta atual pede que se substitua portador de deficiência por pessoa com deficiência. E não há problema em chamar alguém que não enxerga de cego.

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