Haja Vista

Histórias de um repórter com baixa visão

Haja Vista - Filipe Oliveira
Filipe Oliveira

Entra ano, sai ano e ainda guardo a velha coleção de CDs

Disponibilização de conteúdo online aumentou oferta e acessibilidade, mas qualidade de atenção e criação de vínculos com a arte se tornaram desafios maiores

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São Paulo

Minha casa ainda tem prateleiras preenchidas por CDs. Quando se aproxima o Ano Novo, volta aquele propósito de exercitar o desapego, pegar todos eles e vender por alguns centavos o quilo, para que o espaço possa ser aproveitado por novos ocupantes, talvez uma coleção de livros e partituras em braille.

Afinal, caso decidisse escutar algo da coleção, provavelmente teria de Pedir que alguém lesse a capa de cada um dos álbuns para mim até que eu encontrasse algum que me interessasse. Outra solução seria pegar eu mesmo o celular e ir fotografando a capa de um por um, para que um dos aplicativos de reconhecimento de imagens me informasse o que tenho em mãos.

Naturalmente, a opção de abrir um serviço de streaming, que geralmente tem acessibilidade para pessoas com deficiência visual, é mais prática. Com isso, já são anos que meu aparelho de som serve apenas para acumular bagunça e poeira por cima dele.

As tentativas de diminuir o acúmulo de inutilidades remontam ao começo da década passada, quando eu já não comprava mais discos, mas vez por outra ainda ganhava um como brinde por assinatura de alguma revista de música ou presente de Natal, itens que seguem até hoje embalados como recebi, como se fossem item de colecionador.

Nunca há muito sucesso na arrumação. Examino os discos um a um para separá-los em dois grupos: os que vão e os que ficam.Aí chega ao primeiro disco do Caetano que pedi para meus pais porque queria ouvir "O Leãozinho" e "Sampa", canções apresentadas pela professora da quarta série. A coleção da Legião urbana da adolescência, os discos de heavy metal da minha fase guitarrista, a coleção da Folha que me apresentou à música clássica. No máximo, a pilha daqueles que se despedem tem um décimo do tamanho da outra, dos que voltam para seu lugar. Geralmente só vão embora algumas coletâneas sem grande valor sentimental, daquelas que a gente garimpava entre as promoções do supermercado. E, mesmo elas, ,melhor que sejam levadas embora logo, antes que eu me arrependa.

O que se segue a tentativa fracassada de arrumação é uma onda de nostalgia. Lembrança de ficar ouvindo "Faroeste Caboclo" no discman até decorar a letra, de escutar Osvaldo Montenegro e deep Purple na estrada com meu pai voltando de Poços de Caldas (MG) para um tratamento que prometia restaurar a visão..

Cada um desses CDs que permanecem tem uma história de quando foi encontrado e onde foi escutado. Eu sabia de cor a ordem das faixas, a introdução, a letra e o final de cada uma delas.

Quando comprava ou ganhava um CD novo, aquela passava a ser minha companhia por semanas, talvez meses. Estudava com ele, levava o radinho para todo lado e fazia as refeições com Chico Buarque, Djavan, Tom Zé, Dream Theater ou Beatles. Até que entre mim e aquelas canções houvesse intimidade, não havia pressa alguma de ouvir outra coisa. No máximo, ficava uma pilha de três ou quatro em cima da mesa, que iam se alternando conforme o humor do dia.

Hoje, abro o spotify e não sei nem por onde começar. Com tanto à disposição, por que repetir o já conhecido? Há tanto a ouvir pela primeira vez e não há tempo a perder. Por outro lado, se posso ouvir tudo, como fazer a escolha certa? Se não estiver ouvindo a melhor música possível para aquele momento, melhor mudar logo a faixa. Estamos sempre procurando a próxima coisa extraordinária e, nessa busca, na maior parte do tempo não nos concentramos em nada. Para não ter de pensar tanto, pega-se uma playlist qualquer e deixa de fundo enquanto se trabalha ou faz academia.

A oferta infinita e ostensiva não é só de música, claro. Concorrem com ela e entre sí o tempo todo filmes, séries, produtos, fotos, podcasts, videocasts, reels, stories, posts, dancinhas, além de comentários e cortes de tudo isso.

O excesso de conteúdo deu acessibilidade para pessoas com e sem deficiência a uma produção jamais imaginada e, ao mesmo tempo, corremos o risco de não usufruir praticamente nada direito.Não nos damos mais o tempo necessário para absorver as informações mais sutis. Em termos musicais, ficamos com o refrão e não percebemos o que há em volta. Não nos familiarizamos mais com os riffs de guitarra, os solos, os backing vocals.

Uma janela para escapar dessa desatenção generalizada se abre de vez em quando. A mais recente para mim aconteceu com a visita de Paul McCartney ao Brasil neste mês. Ver o ex-Beatle ao vivo significou três horas em que nada que não estivesse acontecendo ali recebesse qualquer migalha de minha atenção.

Três semanas depois, ainda estou no começo da missão que me coloquei de explorar a discografia do artista em sua carreira solo. Escutei o álbum "Band on The Run", de 1973,pela primeira vez de verdade, sem ficar só nas músicas que eu já conhecia ou passando para a próxima a cada 15 segundos. Terminei incrédulo por nunca ter tido essa experiência antes. Tal qual fazia em outros tempos, volto ao começo e dou o play novamente, como fazia aos 15 anos.

Mais do que guardar relíquias, que possamos ter hábitos melhores.Mesmo que eu não abra a caixinha de nenhum dos meus CDs no ano que começa, que eu e todos nós possamos ter a calma para usufruir aquilo que nos enriquece a alma e dá mais alegria com calma e atenção neste próximo ano.

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