Haja Vista

Histórias de um repórter com baixa visão

Haja Vista - Filipe Oliveira
Filipe Oliveira

Pessoas com deficiência e o manto da invisibilidade

Nossa capacidade de diálogo é ignorada diariamente por quem evita se dirigir a nós

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São Paulo

Um paradoxo enfrentado pelas pessoas com deficiência é sermos, ao mesmo tempo, os mais notados e também os mais invisíveis.

Por nossas bengalas, cadeiras de rodas, andadores e também nossa aparência, modo de falar ou nos comportar, somos percebidos e atraímos atenção logo ao entrar em um ambiente. Ao mesmo tempo, somos deliberadamente ignorados com uma frequência espantosa.

Funciona assim: chegamos a uma loja, um restaurante, uma festa ou um consultório médico acompanhados. Imediatamente chega alguém para conversar. Com a pessoa que está ao nosso lado.

Dai a pouco vem a pergunta: "Mas ele não quer se sentar?", "Ele não quer nada para comer?", "Que tamanho de roupa ele usa"?, ou "O que ele está sentindo?".

Não é um caso isolado. Acontece comigo e com pessoas do meu entorno. Cada um se defende como pode. Há quem faça piada com a ignorância alheia de quem tem medo de falar com quem tem deficiência, há quem se zangue com tamanha falta de educação e outros que se sentem profundamente atingidos por uma prova inequívoca de que não fazem parte do mesmo mundo que os demais e chegam às lágrimas.

Há algumas variações no tema desse capacitismo à primeira vista. Como perguntar à minha namorada se eu sou irmão dela ou a um motorista de Uber que me ajudava ao chegar à aula da pós-graduação se ele seria meu cuidador. No primeiro caso, julga-se que alguém só estaria comigo por ser da família, não por ter sido a escolha de um parceiro, e no outro avalia-se minha capacidade de estar sozinho em um ambiente antes de me conhecer.

É difícil separar as motivações de nos evitarem. Por um lado, imagino que quem nunca conviveu com alguém com deficiência foge do contato por medo de cometer uma gafe, perguntar o que não devia, falar ou fazer algo ofensivo sem querer. É um medo que mais atrapalha do que resolve, e só pode ser enfrentado com convivência e busca de informação. Também há quem simplesmente acredita que não vamos conseguir manter uma conversa de igual para igual ou minimamente interessante, não compartilhamos do mesmo universo, com as mesmas alegrias, tristezas e desafios.

De qualquer modo, não é uma situação que possa continuar normalizada como está hoje. No limite, estamos falando de discriminação e preconceito, que são crimes. Não se deve ignorar uma pessoa com deficiência da mesma forma como não se deveria ignorar alguém por sua cor, orientação sexual, gênero, nível de renda, etc.

Enquanto não se estabelece uma consciência de que a pessoa com deficiência tem o direito de se expressar e se comunicar com os demais, penso que cabe a nós e a nossos aliados sermos ainda mais firmes na hora de defender nosso protagonismo.

Isso significa não fingirmos mais que nada aconteceu e somos imunes a esse tipo de tratamento, de um lado, nem ser uma vítima que sofre e vai embora invisível e silenciosamente.

É nosso dever interromper a situação em que somos ignorados. Rasgar o manto da invisibilidade e quem escapa de nós para uma conversa. Explicar que pode ser que até agora nosso interlocutor não teve a oportunidade de se relacionar com alguém tão diferente, mas o mundo mudou, uma boa parte de nós estudamos e trabalhamos, estamos ocupando cada vez mais espaços e temos uma vida muito parecida com a dele. Fingir que não estamos ali é muito desrespeitoso e não é mais uma opção.

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