Linha de Frente

É no hospital que as histórias de vida começam e terminam

Linha de Frente - Gerson Salvador
Gerson Salvador

Diga 33; 33 milhões de brasileiros com fome

Uma das maiores potências agrícolas do mundo com população famélica

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Criança sentada no escuro com prato de comida no colo.
Criança de sete anos durante refeição no município de Tremedal. Cidade tem o 11º pior IDH da Bahia e, em 2012, liderou o ranking Firjan de pior cidade do Brasil para se viver. - Raul Spinassé

Com estetoscópio nas orelhas e alguma seriedade, o médico solicita: diga trinta e três. Com essa manobra procuramos auscultar a vibração da voz, o ruído pode ajudar a diferenciar entre um pulmão normal, uma pneumonia e um derrame pleural, por exemplo.

Nesta semana, o trinta e três estampado nas manchetes dos jornais nos serviu para um diagnóstico difuso. Trinta e três milhões de brasileiros passando fome. Uma das maiores potências em produção agrícola do mundo, uma nação famélica, mais de três vezes a população do Haiti: brasileiros esfaimados.

Entre as macas da emergência cheias de barrigas vazias me recordo de um homem em situação de rua admitido por dor abdominal excruciante.

Com hipóteses de pancreatite, exames laboratoriais pouco alterados, aguardava uma tomografia.

Doutor, o paciente está agitado.

O homem arranca os eletrodos de monitorização e se balança na maca projetando o corpo pra fora do leito, ele treme e estica os acessos venosos.

Eu me aproximo para tentar dialogar.

Vocês vão me deixar com fome? Tá me tirando! Eu vou acabar com tudo aqui. Eu vou acabar com tudo. Eu que-ro co-mer.

Tem gente com fome, tem gente com fome.

Se tem gente com fome, dá de comer.

Ele está em jejum esperando a tomografia.

Dá de comer. Dá de comer.

Ele vai perder o exame.

Dá de comer.

O homem devora o conteúdo do prato volumoso em poucas colheradas.

O exame ora adiado foi suspenso. A dor na barriga sucumbiu ao arroz com feijão, evanesceu.

Doutor, vai me desculpando pelas palavras. Eu só quero uma coisa… não me manda embora antes da janta?!

Preencho a ficha de atendimento, hipótese diagnóstica com quatro letras: fome.

Como prescreveu Solano Trindade. Se tem gente com fome, dá de comer.

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