Mensageiro Sideral

De onde viemos, onde estamos e para onde vamos

Mensageiro Sideral - Salvador Nogueira
Salvador Nogueira
Descrição de chapéu astronomia

Travessia por nuvem interestelar impactou a Terra há 3 milhões de anos

Evento identificado por vestígios geológicos e simulações astrofísicas pode ter afetado a vida

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Cerca de 2 milhões a 3 milhões de anos atrás, quando a coisa mais próxima do ser humano a caminhar sobre a Terra era nosso ancestral evolutivo Homo habilis, o Sistema Solar cruzou uma nuvem fria e gasosa no espaço. O encontro fez com que a bolha magnética protetora gerada pelo Sol encolhesse brutalmente, deixando a Terra exposta ao meio interestelar. O evento deixou marcas em nosso planeta e pode ter tido efeito substancial na biosfera terrestre.

Essa história incrível foi reconstruída de forma convincente por um trio de astrônomos nos EUA, em artigo publicado na última edição da Nature Astronomy. Merav Opher, pesquisadora da Universidade de Boston criada em São Paulo e formada na USP, começou o trabalho à procura de evidências de que a Terra, em algum ponto do passado, teria tido contato com o meio interestelar, que fica além da chamada heliosfera, a bolha protetora gerada pelo vento solar e pelo campo magnético do Sol.

Há registros geológicos de camadas correspondentes a 2-3 milhões de anos atrás, bem como 7 milhões de anos atrás, que expõem uma concentração anormal de dois isótopos radioativos: ferro-60 e plutônio-244. Opher desconfiava que podiam ser sinais de encontros com o meio interestelar, onde esses isótopos, raros e criados por explosões de supernova, são mais abundantes.

Imagem da região mais densa da LRCC (Faixa Local de Nuvens Frias), na constelação do Lince, captada pela emissão de hidrogênio
Imagem da região mais densa da LRCC (Faixa Local de Nuvens Frias), na constelação do Lince, captada pela emissão de hidrogênio - M. Opher et al.

Nas circunstâncias atuais, isso é impossível. No momento, a heliosfera se expande muito além da órbita dos planetas, a 18 bilhões de km de distância do Sol, sua fronteira tendo sido identificada até hoje por apenas duas sondas, as longevas Voyager-1 e 2. Mas, pensou Opher, e se no passado o Sistema Solar cruzou uma nuvem gasosa capaz de fazer encolher a heliosfera?

Investigando as vizinhanças e a trajetória que o Sol (arrastando consigo os planetas e tudo mais ao seu redor) percorreu na Via Láctea ao longo dos últimos milhões de anos, Opher notou que um conjunto de nuvens densas de gás e poeira interestelares conhecido como LRCC (sigla para Faixa Local de Nuvens Frias) teria sido atravessado por nossa família solar há 2-3 milhões de anos.

Opher então entrou em contato com Avi Loeb, astrônomo da Universidade Harvard, e os dois trabalharam juntos em simulações computacionais dos movimentos pregressos do Sol e das nuvens, constatando que de fato o encontro teria acontecido, justamente na região mais densa dessas nuvens.

Os dois então procuraram Joshua Peek, astrônomo do STScI (Instituto de Ciência do Telescópio Espacial). Especialista na LRCC, ele anteriormente havia estimado sua densidade em cerca de 3.000 partículas por centímetro cúbico, até mil vezes mais do que dentro da heliosfera. Trabalhando com Opher e Loeb, Peek constatou que uma colisão entre o Sistema Solar e uma nuvem com aquela densidade reduziria a heliosfera a uma bolha de cerca de 30 milhões de km, menor que a órbita de Mercúrio. Os planetas, Terra inclusa, estariam todos diretamente expostos ao ambiente da nuvem.

A entrada dessa chuva de partículas na atmosfera terrestre teria feito mais que aumentar a presença de isótopos raros. Ela teria afetado a química atmosférica, afetando formação de nuvens, destruindo ozônio e esfriando o clima. Com essas mudanças, quase com certeza teve um impacto na vida –algo que ainda precisa ser estudado.

O Universo é lindo –mas também hostil. Sobrevivência no vácuo do espaço, sem proteção, é impossível. Altas doses de radiação o permeiam. Colisões de asteroides e explosões de supernova ameaçam rotineiramente planetas com transformações catastróficas. A Terra é um oásis para a vida, e diversas camadas nos protegem: a atmosfera, o campo magnético terrestre e também o campo magnético solar. Mas vez por outra acontece algo que quebra todas essas barreiras. Extinções em massa não são de todo incomuns, na escala geológica, e mostram como nosso destino está inevitavelmente conectado ao resto do cosmos. Há de se admirar que, desde que surgiu por aqui, uns 4 bilhões de anos atrás, apesar dos percalços, nossa biosfera jamais se deixou extinguir completamente. O Universo é hostil, mas a vida é teimosa. Por isso, essencialmente, ainda estamos aqui hoje.

Esta coluna é publicada às segundas-feiras na versão impressa, na Folha Corrida.

Siga o Mensageiro Sideral no Facebook, Twitter, Instagram e YouTube

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar sete acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.