Morte Sem Tabu

Morte Sem Tabu - Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
Descrição de chapéu Mente maternidade

Sem o peito, sem o leite, ainda vou ser mãe da menina?

A filha primitiva

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Mãe deprimida segurando seu bebê, cansada e estressada. Pós-parto. ( Foto: momentos globais / adobe stock ) - momentos globais / adobe stock

"Não sei se quero que ela pare de mamar. Dar o peito é o único carinho que sei. O que vou fazer quando ela parar de mamar? Sem o peito, sem o leite, ainda vou ser mãe da menina?"

Essas palavras me arrebataram logo no início de A filha primitiva, romance de estreia da escritora Vanessa Passos, que venceu o prêmio Kindle de Literatura 2021.

O livro, extremamente corajoso, é repleto de sustos para mães e filhas. Como se alguém repentinamente jogasse luz sobre algo que temos tentado a todo custo esconder – do mundo, de nós.

Parar de amamentar pode ser mais difícil para a mãe do que para o bebê, eu já ouvi essa frase algumas vezes. Mas antes ela não fazia sentido para mim e, agora que faz, em nada me ajuda. A pergunta que faço, e que apenas agora consigo elaborar, é exatamente esta: ainda serei mãe da menina?

O que me difere hoje do resto do mundo, o que faz com que minha filha me identifique como seu primeiro amor? Se eu não tivesse conseguido amamentar, se ela não tivesse pegado o peito, se eu não tivesse leite ou rede de apoio, então teríamos descoberto outras maneiras, não teríamos? Ela saberia de alguma forma que ocupo esse lugar central na vida dela, ao menos até que possa resolver diferente. Mas e agora?

"Ela mordeu forte o bico. Sangrou de novo. Cuspiu, enguiou no peito, deve ser por causa dos dentes. Colocou a língua pra fora. Meu Deus, enguiou outra vez. Não faz isso, menina, pega de novo. A mão empurrou o peito."

Não faz isso, menina.

Minha filha ainda parece tão distante desse fim, ela certamente passaria o dia todo mamando. A Organização Mundial da Saúde diz para continuar até os dois anos- ou mais. Parece um bom plano. Bom para quem?

As pessoas dizem para parar, sobra mais tempo para você. Mas eu quero continuar sendo mãe.

Tempo.

Para fazer o que? Luzes no cabelo?

"Já era tempo de parar de mamar, mas a menina continuava agarrada ao peito. No fundo eu gostava, porque era o único momento em que me sentia mãe de verdade. A menina sugando de mim a mãe que eu não era".

Maternar tem tudo a ver com luto.

O luto da separação, incontáveis vezes, com a cria, consigo. Mas morte e vida andam juntas e renascemos outras tantas.

"Agora me dei conta: a chegada da menina me engravidou de novas palavras".

Escrever salva. Escrever é técnica de sobrevivência.

Mas e o tempo? Tempo para escrever e sobreviver e, então, ser mãe, mas aí ter menos tempo de ser mãe.No tempo que já não existe, são suas todas as horas, eu canto para minha filha.

Capa do livro A filha primitiva, de Vanessa Passos
Capa do livro A filha primitiva, de Vanessa Passos - Divulgação

Perguntei para a Vanessa quão autobiográfica é a história de A filha primitiva. Ela me respondeu que "O livro é ficcional. Mas foi narrado com uma vivacidade que faz muitos leitores me perguntarem isso. Minha mãe não é analfabeta, eu conheço meu pai e minha família. Mas acredito que a leitura sempre atravessa a mão que escreve. Então, acredito que o que há de mim no livro (e em muitas mulheres) são as violências que sofremos todos os dias. As pequenas mortes que nos alcançam".

As mulheres do livro não têm nome, são todas nós e todas elas. Ainda nem nascemos o suficiente para ganhar nomes. "O nome pode dizer muito de quem é a pessoa, pelo menos na literatura. Mas na vida real, o nome diz muito mais sobre quem o escolhe". Quem escolheu não deu nome algum, mas deu muito sentimento.

"Não tinha mais cordão umbilical, a menina não mamava mais. Era a raiva agora que passava pra ela, de mãe pra filha. Não foi o parto, não; não foi a contração, não; não foi dar o peito, não; foi a raiva que me tornou mãe".

Posso até não saber ser mãe, mas vou proteger essa menina de tudo e de todos, com uma raiva que eu nem sabia que tinha.

"Em noites de insônia, continuo morrendo sozinha. Minha mãe, em jejum, intercedendo por mim e pela menina no quarto vizinho. A menina, ressonando alto ao meu lado. Coro fúnebre pra minha morte forte, pra minha morte breve. Na manhã seguinte, continuo viva".

A maternidade pode ser tão egoísta, Vanessa nos mostra. Pode ser egoísta, injusta, injustiçada. Humana. Maternar é, acima de tudo, ver a nossa humanidade desnudada. Pouco pode nos deixar tão vulneráveis, julgáveis e indefesas. "Pouca coisa sobra da gente depois da maternidade".

Estou certa de que, assim como eu, muitas pessoas se encontrarão em ao menos uma das passagens de A filha primitiva. E se sentirão acolhidas ao perceber que esses sentimentos de medo, culpa, morte e vida, que muitas vezes nos fazem sufocar, podem ser divididos com tantas outras inominadas, tão identificáveis, tão filhas, tão mães.

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