Morte Sem Tabu

Morte Sem Tabu - Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
Descrição de chapéu Mente

Caro leitor indeciso

Que você não vote pela mentira

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SAO PAULO, SP, 21/09/2022, BRASIL - CARREGAMENTO E LACRACAO DAS URNAS ELETRONICAS - 11:43:57 - O TSE fez nesta manha, na Primeira Zona Eleitoral, nas regiao central, a cerimonia publica de carregamento e lacracao da urnas eletronicas. A chefe do Cartorio, Cintia Hiromi Nakasa, faz a carga e lacracao da urna. Rivaldo Gomes/Folhapress, POLITICA - Folhapress

"Nesse dia de glória para o povo brasileiro, tem um nome que entrará para a história nessa data pela forma como conduziu os trabalhos desta Casa. Parabéns presidente Eduardo Cunha. Perderam em 64, perderam agora em 2016. Pela família e pela inocência das crianças em sala de aula, que o PT nunca teve. Contra o comunismo, pela nossa liberdade, contra o Foro de São Paulo, pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff".

Quando, então deputado federal, Bolsonaro falou essa frase em 2016 durante a sessão do impeachment de Dilma Rousseff na Câmara dos Deputados, eu logo me lembrei de um livro que tinha lido anos antes, enquanto estudava sobre o nazismo.

Apoiando Hitler: consentimento e coerção na Alemanha nazista é uma obra do historiador Robert Gellately, que diz que "Hitler e a Gestapo não tentaram esconder a existência dos campos de concentração, nem os nazistas conquistaram o apoio popular pela força. Ao contrário: conseguiram seu milagre político através do consenso. Distorcendo ideais germânicos, construindo imagens populares positivas por meio da mídia e alimentando fobias milenares".

Bolsonaro nunca escondeu sua admiração pelo Coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, que foi chefe do DOI-Codi, Destacamento de Operações e Informações do Centro de Operações de Defesa Interna, de São Paulo. Segundo relatório final da Comissão Nacional da Verdade, só na gestão de Ustra, o órgão foi responsável pela morte ou desaparecimento de pelo menos 45 presos políticos.

Bolsonaro também nunca escondeu seus elogios à ditadura militar.

Quem votou nele em 2018 pode até ter minimizado o que isso viria a representar para o país sob seu governo. Mas não podia dizer que foi enganado sobre o que pensava seu candidato.

O que está sendo tirado de nós agora é diferente.

Nós perdemos o controle da verdade. Pessoas pretendem votar em uma ou outra pessoa não pelo que de fato aconteceu ou fizeram, mas pelo que chega a elas a seu respeito, sem qualquer compromisso com a verdade.

Em 2018, eu me lembro de ter conversado com algumas pessoas que defendiam o bordão "bandido bom é bandido morto". Perguntava, sinceramente, o que elas entendiam sobre isso. Perguntava, por exemplo, se elas conheciam alguém que já tinha bebido e dirigido e se achavam que essas pessoas deveriam ser mortas.

Penso que foi quando comecei a aprender que o óbvio é algo que não existe. Aquilo que é tão objetivo aos nossos olhos passa longe de ser percebido por um grande número de pessoas.

Na última semana, favelas inteiras foram impunemente chamadas de conjuntos de criminosos. Ao contrário de candidatos à presidência da república, que estão naturalmente expostos a julgamentos alheios, estamos falando de centenas de milhares de pessoas que estão simplesmente exercendo seus direitos de existir e estão sendo criminalizadas em razão do lugar onde moram.

Perguntei a alguns conhecidos que compartilharam conteúdos do tipo se acham que na favela só tem bandido. "Não, claro que não". Bem, é isso que você está defendendo. E é com base nisso que um candidato está sendo associado ao crime, e outro ao combate a ele.

Agora, esse assunto já foi substituído por outro. A marca destas eleições, para mim, é a velocidade em que as pautas mudam. Parece que faz meses que os tema foram pedofilia e banheiro unissex, que provavelmente voltam ao palco do debate ainda antes do próximo domingo, em 5 dias.

Três motivos me levam a escrever este texto.

O primeiro deles é que um projeto de país é como vacina, uma estratégia coletiva. E o ódio não é uma estratégia coletiva eficiente.

O segundo é que fomos trazidos a um ponto de ruptura, que fez com que posturas políticas antes antagônicas se unissem pelo direito de continuar discordando.

O terceiro é que não existe o direito à mentira. Acredito, talvez ingenuamente, que a maior parte das pessoas quer saber o que realmente está acontecendo para decidir. Quer saber se aquele print que recebeu no Whatsapp ou Telegram, embora confirme o que pensa, é o conteúdo de uma norma que realmente existe ou foi inventada para ajudar ou prejudicar um candidato.

Por isso, pedi ao advogado Diogo Fernandes Gradim, mestre em Direito Eleitoral pela UFMG e membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político, que me ajudasse a explicar sobre alguns tópicos que tomaram o debate público nos últimos dias.

Foto do advogado Diogo Gradim, sorrindo e usando terno e gravata
Foto do advogado Diogo Gradim, mestre em Direito Eleitoral pela UFMG e membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político - Arquivo pessoal

Censura ou limites à liberdade de expressão?

MORTE SEM TABU: Várias pessoas se sentiram confusas sobre decisões do Tribunal Superior Eleitoral em relação a conteúdos da Jovem Pan e do Brasil Paralelo nos últimos dias. Como você vê esse tema?

DIOGO: É preciso fazer algumas explicações sobre a legislação eleitoral. Em primeiro lugar, há diversas regras sobre propaganda eleitoral. Por exemplo, informações obrigatórias sobre coligações que precisam aparecer em toda propaganda, lista de locais onde não podem ser afixados conteúdos de propaganda, regras sobre o tipo de material que pode ser utilizado. E também é proibido a qualquer empresa financiar direta ou indiretamente candidaturas, mudança que entrou em vigor desde as eleições de 2016, após decisão do Supremo Tribunal Federal na Ação Direta de Inconstitucionalidade n. 4650.

Em relação a rádio e televisão, as empresas não podem tomar lado nas eleições e devem tratar os candidatos de forma igual, com proibição expressa na lei para tratamento privilegiado (art. 45, IV, da Lei nº 9504/1997). A utilização de dinheiro de origem proibida ou de forma proibida pode caracterizar abuso de poder econômico e a atuação de meios de comunicação pode também caracterizar uma forma de abuso, chamada uso indevido dos meios de comunicação social (art. 22, caput, da Lei Complementar nº 64/1990).

A Jovem Pan, através de seus programas e jornalistas, proferiu várias ofensas ao candidato Lula. Enquanto elogia e recebe de forma amigável o candidato Jair Bolsonaro e seus aliados, afirmou, por exemplo, que "o petismo é uma escória", que Lula é "chefe de organização criminosa" (https://www.bbc.com/portuguese/brasil-63338642) e acusou Lula de ser mandante de um assassinato cuja investigação foi concluída e a quadrilha condenada e presa.

Após essa prática reiterada, a emissora foi processada pela prática de abuso de poder com pedidos para que as mesmas condutas praticadas durante a maioria da campanha eleitoral fossem impedidas. Portanto, não houve censura, muito menos censura prévia.

A empresa Brasil Paralelo também veicula conteúdos favoráveis ao candidato Jair Bolsonaro. Como não se trata de rádio ou televisão, não há problema em tomar lado, porém os gastos milionários no YouTube e outras plataformas para aumentar as visualizações de seu material é um financiamento ilegal por ser feito por pessoa jurídica.

Sobre a proibição de divulgação de obra audiovisual a poucos dias da eleição, o professor Renato Ribeiro de Almeida, Mestre em Direito Político e Econômico pela Universidade Presbiteriana Mackenzie e Doutor em Direito do Estado pela USP, explica que se baseia "na teoria conspiratória de que Bolsonaro foi alvo de uma facada em 2018 arquitetada por militantes de esquerda- a investigação da Polícia Federal, porém, concluiu que o autor da agressão, Adélio Lopes, agiu sozinho, por iniciativa própria e sem ajuda de terceiros. Como o filme foi financiado por empresas, sua veiculação geraria uma exposição que tenderia a desequilibrar a eleição".

O desequilíbrio surge, assim, da ausência de tempo hábil para a contraposição de argumentos que demonstrem que essa narrativa é falsa com a mesma produção e o mesmo alcance e, principalmente, pela utilização de recursos financeiros de pessoas jurídicas, já que estão proibidos a todos os demais candidatos pela mesma legislação eleitoral.

É importante dizer que a justiça eleitoral foi bastante tolerante com a veiculação de mentiras pelo atual presidente durante o governo. Ao contrário dos demais candidatos à presidência, Jair Bolsonaro teve a sua disposição a máquina pública nos últimos quatro anos. Não é incomum vermos políticos que mentem, claro, mas, conforme a plataforma jornalística de investigação de campanhas de desinformação e checagem de fatos Aos Fatos, Bolsonaro deu 6.460 declarações falsas ou distorcidas em 1.389 dias como presidente.

A repetição de vídeos contendo mentiras foi tão grande que foi concedido direito de resposta à candidatura de Lula em mais de 100 propagandas de televisão. Esse grande número se deu pela repetição, por mais de 100 vezes, de acusação de ligação com criminosos que já havia sido considerada mentirosa pelo TSE, que afirmou se tratar de "manipulação de dados referentes a questões bastante sensíveis" (julgamento da Rp 0601432-30, que ocorreu em 18.10.2022).

Não só o próprio presidente insistiu nessa prática, mas também muitos meios de comunicação e aliados próximos. Não estamos falando, portanto, de impedir que alguém fale, o que seria censura, mas de responsabilizar quem mente de forma repetitiva, o que, no período eleitoral, precisa ser punido com mais rigor, sob risco à própria democracia, já que o voto pode acabar acontecendo com base em mentiras.

Por fim, é importante dizer que não somente a campanha de Bolsonaro foi punida pelo TSE. As propagandas de Lula que mais atingiram a campanha de Bolsonaro também foram tiradas do ar (peças de publicidade sobre a afirmação do presidente de que "pintou um clima" com meninas da Venezuela e sobre vídeo antigo em que o presidente falava sobre ser possível comer carne humana), além de ter sido aberta investigação contra um de seus aliados, André Janones.

Gratuidade do transporte público no dia das eleições

MORTE SEM TABU: Por que a gratuidade do transporte público é importante nestas eleições?

DIOGO: Nos dias anteriores ao primeiro turno das eleições, surgiu um debate que volta a se tornar relevante durante a preparação para o segundo turno, que é o transporte dos eleitores e a abstenção relacionada a isso. Tivemos, no primeiro turno, um número recorde de abstenções e esse número tende, historicamente, a aumentar no segundo turno.

Muitos eleitores votam nos locais da adolescência e juventude, precisando se deslocar da residência atual.

Dados do 2º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia da Covid-19 no Brasil, realizado pela Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional (Rede PENSSAN), mostraram que 125,2 millhões de brasileiros vivem com algum grau de insegurança alimentar.

Em uma profunda crise econômica, em que mais da metade dos brasileiros não sabe se conseguirá se alimentar de forma adequada na próxima refeição, o dinheiro da passagem pode pesar mais do que as consequências de não ir votar, como uma multa simbólica ou mesmo proibições relacionadas a atividades que não fazem parte da sua realidade (prestar concurso público ou tirar passaporte, por exemplo).

Em localidades com área rural extensa, a Justiça Eleitoral credencia e utiliza veículos públicos para transportar gratuitamente eleitores, o que é autorizado pela Lei nº 6091/1974. E, neste ano, muitos municípios permitiram o transporte gratuito.

Nesse contexto, a campanha de Bolsonaro requereu que o Tribunal Superior Eleitoral limitasse a gratuidade do transporte público nas eleições.

O Ministro Benedito Gonçalves, do TSE, ao negar o pedido, considerou-o absurdo. É absurdo não apenas porque quer desequilibrar as eleições, mas porque usa da pobreza das pessoas para impedi-las de exercer um direito que elas têm, que é o de votar.

Criminalização e estigmatização da pobreza

MORTE SEM TABU: Muito se falou sobre a ida de Lula ao Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro, e à fala de Bolsonaro sobre "pintar um clima" com meninas venezuelanas. Qual o impacto disso no processo eleitoral?

DIOGO: Já iniciado o segundo turno das eleições, outros debates relacionados à pobreza e, principalmente, ao preconceito e à estigmatização dos pobres ganharam as manchetes do Brasil.

Após a realização de ato de campanha por Lula no Complexo do Alemão, surgiu uma série de boatos sobre a sigla bordada em boné utilizado pelo candidato e até sobre algumas pessoas que tiraram foto com ele.

O Complexo do Alemão tem população estimada de 180 mil habitantes e a campanha de Bolsonaro acusou, de forma generalizada e irresponsável, todas as pessoas que participaram do ato de seu adversário de serem ligadas ao tráfico.

Acusaram, também, Lula de ter ligação com o crime, por ter sido "autorizado" a subir em área dominada pelo tráfico e por usar boné com sigla CPX.

Todos os boatos foram checados por diversos veículos diferentes e todos tiveram a falsidade demonstrada. Não se trata de uma incorreção, mas de informação falsa usada para, usando de preconceitos e estigmas sobre aquela população favelada, majoritariamente preta, atribuir a ela essa relação com a criminalidade.

Foi demonstrado que a escolta costumeira da Polícia Federal estava presente, inclusive o delegado destacado como coordenador de segurança de sua campanha, ao lado do candidato. Esclareceu-se, também, que a sigla CPX não tem relação com organização criminosa, sendo, na verdade, uma abreviação de "complexo". Até mesmo uma pessoa que tirou foto com o candidato e foi identificada como criminosa é o ator e modelo Diego Raymond.

Em um outro episódio muito repercutido nos últimos dias, Bolsonaro relatou visita a um local onde estavam meninas venezuelanas. Foi bastante debatido o uso da expressão "pintou um clima" com as meninas de 14 a 16 anos, porém foi deixado um pouco de lado o aspecto de preconceito e estigma com pessoas estrangeiras e pobres.

Ao ver várias meninas "iguaizinhas", que descreveu como bonitinhas e arrumadinhas, o presidente pressupôs que somente poderiam estar arrumadas para prostituição. Ao contrário da insinuação feita no vídeo mais conhecido, outro momento demonstra que houve afirmação de que estariam arrumadas para fazer programa.

Além da xenofobia no tratamento uniforme de pessoas diferentes, retirando a sua individualidade, "iguaizinhas", a fala de Bolsonaro é carregada de preconceitos.

As meninas, refugiadas venezuelanas, fazem parte de um projeto social, estavam recebendo aulas de maquiagem naquele dia, e unicamente pela interpretação de Bolsonaro sobre sua aparência, apesar da idade entre 14 e 16 anos, foram acusadas de prostituição. Pior, sem que o chefe de Estado do Brasil fizesse qualquer coisa para apurar esse suposto crime ocorrido em seu território, focando apenas em suas narrativas eleitorais.

Busque dados confiáveis sobre os conteúdos que recebe

Os últimos dias de campanha eleitoral tem aumentado a tensão, mas também trazido temas que podem ser decisivos para a eleição e para cada eleitor ou eleitora. Debater alguns aspectos de fatos relevantes, especialmente buscando informações confiáveis e um olhar diferente daqueles que já foram lançados, pode colocar uma reflexão ou uma perspectiva que auxilie neste momento.

Para muito além de ofensas, promessas mirabolantes e discursos inflamados, é possível encontrar nos detalhes algo que nos sirva para tomar decisões eleitorais.

O voto não trará, ao apertar "confirma", toda a mudança esperada por cada um dos eleitores, mas guarda uma possibilidade importantíssima de participação e decisão sobre diversos temas através do candidato escolhido.

Se você não está certo de que a informação que recebeu é realmente correta ou tem dúvidas sobre outros pontos, especialmente sobre a veracidade de conteúdos objetivamente verificáveis, como decisões judiciais e normas, manda uma mensagem para a gente no Instagram @mortesemtabu_ @cynthia0000 @diogogradim :)

Sites de checagem:

LUPA: https://lupa.uol.com.br/

FATO OU FAKE: https://g1.globo.com/fato-ou-fake/

TSE: https://www.tse.jus.br/comunicacao/noticias/2022/Outubro/checagem-de-noticias-pelo-assistente-virtual-do-tse-traz-novidades

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