Morte Sem Tabu

Morte Sem Tabu - Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
Descrição de chapéu Mente

Atravessar o inferno: os últimos dias do meu pai

Meu pai não precisava ter sofrido tanto

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Priscila Gontijo

No final da internação por mais de um mês no CTI (Centro de Terapia Intensiva) de um hospital em Resende, descubro, assombrada, o quanto meu pai sofreu em vão. Sendo portador de DPOC, como os especialistas adoram repetir, isto é, alguém que padece de doença pulmonar obstrutiva crônica, ele passou por três procedimentos cirúrgicos com entubações e sobreviveu bravamente. Um tombo na escada foi a causa do estrago. Meu pai fraturou duas vértebras: L1 e L4. O neurocirurgião decidiu pelo procedimento para que ele pudesse voltar a andar, mesmo correndo sérios riscos, por conta das comorbidades. Meu pai concordou, queria voltar logo para casa.

A cirurgia na coluna lombar para fixar uma placa com oito parafusos gerou muitas dores. Ele sobreviveu, mas o pós-operatório foi cheio de complicações. Ele foi entubado, desentubado, precisou de nutrição parental, septicemia, hemodiálise, antibióticos, respiração artificial. E veio mais um procedimento invasivo, uma cistostomia para lavar com soro a bexiga cheia de sangue. No corredor do hospital, antes de entrar na sala, papai beijou a minha mão. Depois da terceira ocorrência, ele retornou para o quarto da CTI muito cansado e quase sem fôlego. Tentava dizer algo que eu não conseguia entender. Meus irmãos ficaram devastados ao ver o seu estado, mesmo tendo acompanhado de perto as cirurgias anteriores. Meu pai não conseguia respirar e sussurrou "estou sofrendo pra caralho". Ele começou a pedir socorro, pois parecia estar morrendo asfixiado. E foi então que o absurdo se deu: o hospital passou a naturalizar a sua falta de ar.

Mesmo depois de recorrer aos cuidados paliativos para que ele não sofresse tanto, havia um desdém geral por seu estado agônico. A médica paliativista não se intimidou em se ausentar e partiu no dia seguinte de nossa conferência familiar para um congresso em Curitiba. Como se não bastasse deixar para trás um paciente terminal, ela também não providenciou nenhum outro paliativista para ficar em seu lugar. Aparentemente, era só dar um "pause" no meu pai enquanto ela viajava e depois botar o seu corpo para tocar novamente quando retornasse. Desse modo, a doutora congressista desvalorizava a própria especialidade, como se a sua função fosse menor. Ela preferiu a palestra ao afogado.

Ricardo e Priscila Gontijo, pai e filha, exibem um o livro do outro
Ricardo e Priscila Gontijo exibem um o livro do outro em lançamento - Priscila Gontijo

Exasperada ao vê-lo puxando o ar com tanta dificuldade, eu pedia mais morfina, mais remédio, mais cobertor por conta de seus pés e mãos gelados, por conta de sua tremedeira, pedia para desamarrar seus braços e pernas, para tirarem os pedaços de detritos que sobravam em sua boca, para ajeitar o travesseiro, pois a cabeça se inclinava e pendia para o lado com o esforço do pulmão. As enfermeiras, incomodadas, obedeciam entre um ranger de dentes e um elogio ou outro ao presidente Jair Bolsonaro. Atitude no mínimo questionável em se tratando de um ambiente fechado, em que pessoas vulneráveis estão presas numa cama, obrigadas a engolir a preferência política alardeada pelos médicos. O agravante, no caso do meu pai, era o fato dele ter sido um perseguido político e militante de esquerda.

Um dia, antes das terríveis complicações da última cirurgia, grogue de remédios, ele me confidenciou: "Estou cercado de inimigos. Estão me torturando aqui dentro. Descobriram que eu sou de esquerda".

Em que pese a causa do delírio, possivelmente ocasionado pelo uso de sedativos, havia, sim, um despudor da equipe hospitalar em idolatrar um nazifascista no meio do CTI. Ao menos, tratava-se de uma ação desrespeitosa. Esse comportamento nocivo somava-se às inúmeras falhas, porém, é preciso atentar para este ponto em específico, pois não se trata de um caso isolado. A conduta de reverência ao capitão, que durante todo o seu mandato esnobou a ciência e a medicina, merece um destaque especial. Ao fazer essa escolha, evidencia-se uma mentalidade autoritária dos clínicos, uma mentalidade que banaliza o sofrimento humano, que não apenas naturaliza a falta de ar de um paciente, mas desdenha do seu estado, como o próprio Presidente da República fez dos doentes com Covid em rede nacional. Esses mesmos doutores vivenciaram o caos da Covid-19 no auge da crise sanitária no país, ou seja, viveram e sofreram na pele os efeitos de medidas espúrias que só ajudaram na propagação do vírus. Há algo de muito errado com a classe médica brasileira e é preciso não adiar esse debate, pois a vida humana é urgente. Digo mais, o acolhimento final é urgente.

Eu não tenho plano de saúde e me trato pelo SUS, mas meu pai tinha um bom plano. Pensei que ele estaria protegido, em sua condição de idoso repleto de comorbidades. Nunca estamos seguros quando um parente de idade avançada vai parar no hospital, com ou sem plano, mas aquela carteirinha, de alguma maneira, me confortava. Eu acreditei no acolhimento de uma equipe médica responsável. E o que aconteceu foi justamente o contrário.

MEU PAI NÃO PRECISAVA TER SOFRIDO TANTO

Foi um calvário. Sei que muitas pessoas abandonam os parentes, não conseguem visitar o doente, apenas aguardam a notícia da morte. Eu e os meus irmãos optamos por estar presentes. Acompanhei o meu pai nessa temporada no inferno e afirmo que valeu cada segundo. Cada pessoa que participa dessa travessia tem o seu momento único. Só eu vi o seu sorriso banguela quando botei "As Bachianas" do Villa Lobos, só eu o vi explicar o teatro do absurdo para a equipe médica antes da primeira cirurgia, quando ainda estava bem e chamava o neurocirurgião de Godot, já que ele nunca aparecia, só eu segurei a sua mão e o vi chorar de medo. Ele me sussurrou antes de entrar em agonia: "estou apavorado".

Ninguém sai ileso dessa experiência. E nem deveria. O final da vida é a maior experiência humana em intensidade e afeto.

Mas insuportável mesmo é a impotência. Eu só queria que alguém diminuísse o seu sofrimento. Não pedia por um milagre ou grandes proezas científicas, desejava apenas que ele tivesse um pouco de conforto.

E ele veio. Através da amiga Lucia Maciel, consegui o contato do doutor Douglas Crispim (Presidente da Academia Nacional de Cuidados Paliativos) e conversamos por telefone. Ele foi muito solícito e cuidadoso, não deu nenhuma dica de conduta, até porque não estava vendo o paciente, mas se colocou à disposição 24 horas. Diferentemente da médica paliativista do hospital, que não deixou contato e desapareceu. Foi através do doutor Douglas que entendi que o cuidado paliativo deveria proporcionar maior alívio de sintomas físicos e psíquicos o quanto possível.

No dia seguinte, ao chegar ao hospital e ver o meu pai, mandei chamar a intensivista com urgência. Como demorou a aparecer, resolvi gravar um vídeo do meu pai com a respiração agônica e enviei para o doutor Douglas. Quando a médica surgiu, ouvi que ela tinha diminuído a morfina por minha causa. Ela entendera que eu estava achando o meu pai muito sonolento. Encarei o seu rosto, estupefata. Então eu tinha sido promovida à clínica geral? Tentei explicar que eu não tinha cursado medicina e não poderia, em nenhuma hipótese, sugerir qualquer tipo de sedação ou saber a sua quantidade. Ela insistiu que quando os familiares pediam cuidados paliativos, ela se preocupava mais com eles do que com o doente. Eu gritei: "Não! Se preocupe com o doente! Olhe pra ele! Diminua o seu sofrimento, por favor!" Quando percebi a incompetência absoluta, perguntei da médica paliativista, mas ela continuava no congresso. Implorei para que conversasse com o doutor Douglas. Ela aceitou. Como ele tinha assistido ao vídeo, pediu para tirarem a diálise, que isso só desgastava o corpo do meu pai e o fazia sofrer ainda mais, sem alterar o desfecho. Talvez ele já estivesse entrando em falência múltipla dos órgãos. No dia seguinte, doutor Douglas conversaria com a ausente paliativista, mas meu pai morreu às 06h35.

Nossa sociedade ainda lida com a morte como um tabu e talvez por esse motivo meu pai não tenha recebido a visita de nenhum amigo. Mas é preciso encarar. Até para compreender que, nessa travessia, prolongar a vida a qualquer custo é uma crueldade.

Meu pai, Ricardo Gontijo, foi um homem brilhante. Um jornalista premiado, escritor talentoso e boêmio incorrigível. Publicou dois livros-reportagem, Transamazônica e Sem vergonha da utopia, este sobre o sociólogo Herbert de Souza, o Betinho. Ainda os romances Prisioneiro do círculo, A correnteza e Pai morto, vivo. Deixou dois inéditos, um de contos e outro de poesia.

Foi um homem que lutou pela redemocratização do país, que esteve nas emblemáticas redações de O sol e Opinião. Passou ainda por Jornal do Commercio, O Globo, sucursal da Folha de S.Paulo, jornais Tribuna da Imprensa e Última Hora. Na década de 1970, na TV, foi editor de Internacional da TV Globo, um dos pioneiros da Educativa, e TV Rio. Entre diversos prêmios, recebeu dois Esso de Jornalismo quando esteve na Folha da Tarde.

Ele merecia um final digno, com algum conforto, e não o abandono e o descaso de um Godot de jaleco branco.

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