Morte Sem Tabu

Morte Sem Tabu - Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
Descrição de chapéu Mente

Finados e memória: a comida como forma de homenagem

Histórias de afeto e saudade ligadas à comida fazem parte da vida de enlutados

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São Paulo (SP)

Conversava com uma amiga sobre a importância da culinária para as populações imigrantes. A comida é um jeito de nos sentirmos em casa, mesmo quando estamos longe. Ela se emocionou, pois bem na hora estava comendo um donuts e se lembrou da mãe, que morreu poucos meses atrás.

Também fiquei mexida. Lembrei: quando meu pai morreu, a vó Laurentina passou mais de um ano sem fazer polenta com carne moída. No dia em que finalmente conseguiu se aproximar do prato, nos chamou para comer e tinha um lamento profundo em volta na mesa. Ninguém dizia nada, mas era possível sentir a falta do pai a cada colherada engolida.

Duas mulheres e um homem estão preparando um bolo dentro de uma cozinha
Vó Laurentina cozinhando seu tradicional bolo de fubá com a ajuda da nora, Luzia, e o filho João - Jéssica Moreira

Nesta semana em que celebramos nossos mortos, essa conversa sobre afeto, comida e saudades me levou a uma sinapse: "o luto é um lugar e esse lugar é estrangeiro". E durante a caminhada dentro das ruas deste espaço algumas comidas podem trazer ora a sensação de conforto, ora de dor, a depender de como estamos vivendo esse processo.

O luto como lugar

Toda vez que viajo para um novo país, sinto que preciso de tempo para me acostumar à língua, ao clima, à culinária. Em 2015, quando vivi em Dublin, Irlanda, comprava leite condensado no Mercado Polonês para lembrar do doce brasileiro. Também mexia o arroz local de jeito diferente pra parecer o da minha mãe. Além da comida, pouco a pouco as ruas de James Joyce foram se tornando mais do que lugares de passagem, tornaram-se espaços de afeto e acolhida, lugares de encontro e construção de laços.

Vivi coincidentemente o luto de meu pai num país estrangeiro, mas olhando esse luto com algum distanciamento – oito anos se passaram – consigo ver que estrangeiro não era apenas o país, mas o sentimento de existir no mundo sem meu pai.

Tudo era estranho. Eu não entendia as pessoas, elas não me entendiam. Eu tentava comunicar e expressar meu sentimento, mas não tinha sequer vocabulário para isso. Era desesperador não encontrar uma linguagem comum entre amigos que sempre foram tão próximos, ou até mesmo familiares que estavam tão enlutados quanto eu.

Para isso acontecer, você não precisa sair de seu país. Isso é uma realidade dentro da própria família. Muitas vezes há muitos países estrangeiros dentro de uma única casa, já que cada pessoa lida de um jeito com a morte de quem se ama.

Qual prato lembra a pessoa que morreu?

Para ir além da minha experiência, partilhei nas redes sociais a seguinte pergunta: qual é a bebida ou prato que faz você lembrar de alguém que amava e que já morreu?

A Olga Bagatini, que perdeu a mãe há alguns meses, contou de uma crise de choro que a acometeu quando tentou fazer uma sopa igual a de sua mãe e não conseguiu. "Estou treinando pra conseguir". Para ela, preparar a sopa é fazer uma homenagem e por isso doeu tanto não alcançar o mesmo sabor. "Mas fui almoçar com meus avós e pedi pra eles me ensinarem tim tim por tim tim".

Thaís Santana mora há cinco anos na mesma cidade onde vivi meu luto, Dublin. Para além do luto pela mudança de país, ela viveu na capital irlandesa o segundo ano do luto de sua mãe. Desde fevereiro, vive também outro luto: a partida do pai em decorrência de um AVC.

"Meu pai fazia queijo quente pra mim de manhã. Esse era o jeito dele de cuidar, cozinhando algo, fazendo suco natural. Desses anos de Irlanda, misto quente é o prato que mais senti saudade. Pizza também. Depois eu compreendi melhor que esses são meus pratos favoritos desde criança por conta dos meus pais, afetivamente me lembra muito eles. Às vezes, na volta do trabalho, no quinto dia útil do mês, ele voltava me trazendo misto quente como mimo. Com minha mãe não era diferente. A hora do lanchinho, era a hora do misto quente e suco de laranja. Até hoje, quando quero me agradar, é isso que me dá vontade de fazer".

A Caroline Alves, que é minha prima inclusive, contou que para além das comidas e bebidas que trazem saudades de seus pais, há também aquelas que hoje só existem na memória, já que o tempero de sua mãe era muito específico e ela não encontra o sabor em outro lugar. "Ela fazia uma batata frita do tipo chips com fubá que deixava a batata muito sequinha e saborosa. No caso da minha mãe, eu via que a cozinha era um lugar de prazer e potência pra ela. sem querer romantizar o sistema patriarcal que a colocou nessa posição, mas ela era realmente autoridade nesse assunto".

Tempo para reconhecer o novo

Assim como fiz com as ruas de Dublin, também precisei reconhecer as ruas do meu luto criando novas memórias, mas sem esquecer as antigas. Tentei encontrar em quais lugares da minha memória meus mortos poderiam existir.

Olha só: meu pai sempre está presente nos sambas e cervejas que tomo. Minha tia Cida nos bolos ou beijos estalados na bochecha. A vó Laurentina nos santos na parede, no rádio ou enquanto faço arroz. Tio Tiago em cada fusca branco que vejo virando a esquina. E meu primo Tiaguinho quando brinco com nosso afilhado no quintal. Vô Zé está no violão. Vô Bastião no binóculos em dia de lua grande. A vó Evarista na dança, em toda e qualquer dança.

Eu sempre digo que essa é uma experiência muito pessoal, mas pode ser que alguém, nesse momento, esteja vivendo esse lugar estrangeiro e doído, e também esteja por aí procurando um jeito de aprender a viver nesse novo mundo.

No filme "Viva: a vida é uma festa", as famílias mexicanas aparecem homenageando seus mortos com um lindo altar onde há fotos e pratos preferidos de quem morreu. O Dia de Finados pode ser uma oportunidade de celebrar nossos mortos, mesmo que seja na intimidade de nossas casas, entre uma refeição e outra.

Aliás, conta aqui pra mim: quais são os lugares do seu luto que você está percorrendo agora? Ou, então, quais lugares você encontrou? (Você pode responder comentando nesse post, ou nas nossas redes sociais do Morte Sem Tabu: Instagram e Facebook)

Jéssica Moreira

Jéssica Moreira é escritora e jornalista. Coautora do Blog Morte Sem Tabu e Cofundadora do Nós, mulheres da periferia

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