Morte Sem Tabu

Morte Sem Tabu - Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
Descrição de chapéu
Mente Gal Costa

Gal: Essa voz não sai de mim

Seu corpo está enterrado perto de uma laranjeira que eu adoro, ali no Carmo

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Osmair Cândido

Enquanto eu botava o disco na vitrola, meu tio Expedito afinava os violões, sim, eram dois, um de seis cordas e outro de sete cordas.

O disco girava e minha atenção crescia com a maestria do violão de meu tio e principalmente com a voz da cantora que parecia trazer os sentimentos nas mãos de modo sutil e deixá-los à mostra, à mercê da percepção.

Os bordões eram exatos, meu tio pedia minha atenção para acompanhamento enquanto meu pai da cozinha dizia um tanto zangado: "Maysa, o nome da cantora é Maysa", ouça para saber das coisas rapaz!

Os dois saíram deixando-me com os violões e uma profunda curiosidade. Apanhei o de seis cordas e fiz lá os três acordes de sempre e me dei conta da voz da cantora.

A voz de Maysa ocupou toda aquela tarde: "Você conseguiu e agora diz que tem pena de mim", a letra da música era de difícil compreensão para um menino de nove anos, mas a voz era um afago para meus ouvidos.

A maioria dos domingos dos anos sessenta e setenta, minha casa era uma espécie de palco, meu pai insistia em serestas e as obras primas de Noel Rosa, mas ao final todos, embalados por umas cervejas, cantavam "Barracão de Cinco".

Aí já era certa a execução maravilhosa do violão de sete. Além de meu tio havia outros violonistas e meu pai exigindo de mim a atenção para as músicas e todo processo de criação: "Elizeth Cardoso, meu rapaz, Divina, Divina".

Realmente tanto Maysa quanto Elizeth deixaram em mim um gosto de céu. Maysa construiu com suas maravilhosas interpretações uma espécie de carreira de pólvora que quando encontrava as perfeitas extensões dos acordes provocava um fogo intenso, uma explosão catártica que deixou e deixa marcas em gosta de música.

O canto denso de Elizeth Cardoso merece minha profunda admiração. A escolha das músicas e o refinamento de cada interpretação, dizia meu tio ela é uma cantora para qualquer ritmo de bossa nova ao forró. De certa maneira ela representou e representa muito do povo negro do Rio de Janeiro e do Brasil.

A música pode ser vista como uma estrada, veículo ou meio de tirar este cinza que se agiganta ao nosso redor, trafegar pelas notas musicais, mas ela também pode ser destino, uma via para escapulir da solidão.

Verdade que passei muito tempo arranhando violão e escutando tmuita coisa além desas duas cantoras. Com meu irmão ouvi Elis Regina que dizia sua arte com precisão e técnica, uma maneira que transbordava emoções.

Em companhia de José Henrique, meu amigo até hoje, lá no final dos anos setenta tomei uma dose de arte além do copo, passamos a acompanhar a vanguarda de Itamar Assunção, Arrigo Barnabé, bom era que Itamar não usava pedestal.

Não era raro conversar com Itamar pelas ruas da Penha de França, cumprimentar e rir com ele em apresentações, tempos de muito rock nacional, Cazuza e bandas de Brasília e já falo dos anos oitenta.

Ouvir músicas de Itamar Assunção foi um passo para perceber que a arte enriquece com a sensibilidade do artista, novos instrumentos, adaptações, em casa deixei meu violão de lado.

Passei um bom tempo pensando na inovação que Caetano Veloso e Gilberto Gil trouxeram não só para a música popular brasileira, mas para a cultura, sugerindo muitas reflexões amparadas ou provocadas por pensamentos de liberdade.

Qualquer arte é uma linguagem que deve ser sempre lapidada com muito esmero. Para melhor refletir sobre música tornei às antigas cantoras sentido a voz como extensão e amplificação de instrumentos musicais.

Em um destes dias que a gente quer esquecer fui demitido de um escritório em São Paulo, rumei até Cabo Frio sem falar ou ouvir palavras, o peso da vida me jogava para inferno de prédios e arrependimentos.

O calor do litoral norte fluminense me apanhou pelas mãos, tomei benção de toda alegria e com muito prazer dei aos ouvidos o gosto de "Azul" canção de Djavan interpretada por Gal Costa, a música me possuiu como um espírito.

Por um bom tempo a voz de Gal ondulou em minha alma e com maior felicidade e chorando como um menino eu ouvi a cantora Gal Costa que parecia dizer só para mim: "Me dá um beijo com tudo de bom e acende a noite na Guanabara".

"Sorte" foi uma obra que trouxe o prazer de estar vivo e perceber a arte de uma mulher linda, sensível dona de uma presença dourada, eu queria para sempre aquela noite na Guanabara.

Foi não, ela está aqui comigo, não quero ver jornal, nem prédios, quero ouvir Gal Costa, quero em mim o gosto do céu, esta voz não sai de mim.

Gal Costa não é de ontem, não é de agora, como Maysa e Elizeth, é para sempre.

Esta voz não sai de mim.

Osmair Cândido, conhecido como Fininho, é sepultador da prefeitura de São Paulo, filósofo e escritor. @osmaircandido

O corpo de Gal Costa está enterrado no Cemitério Venerável Ordem Terceira Nossa Senhora Carmo, no bairro da Consolação, em São Paulo. Esse cemitério foi inaugurado em 1868 e é tombado pelo Conselho de Defesa do Patrimônio histórico, arqueológico, artístico e turístico (CONDEPHAAT). Pode ser visitado de segunda a sábado, das 08h às 17h. Domingos e feriados, das 09h às 13h. Telefone: 11-3256-4471. Rua Sergipe, 83.

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