Morte Sem Tabu

Morte Sem Tabu - Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
Descrição de chapéu Mente Natal

O luto da guirlanda

Conto de natal

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Passava em frente à mesma loja de quinquilharia quase todo dia, mas só na época do Natal prestava atenção nela. Época do natal não, que hoje em dia papais noéis chegam às prateleiras em setembro e ficam até o carnaval. Digamos então, que prestava atenção mais de um terço do ano.

Algum pensamento me acompanhava até a estação do trem e, antes das sete, já estava perdida em outras coisas.

O que é que tinha de tão importante naquele dia, que eu não tinha cinco minutos para entrar na loja e olhar uma guirlanda?

Tem gente que pensa que o que dói no luto são os grandes eventos, os momentos especiais. Não são. Ao menos não para mim. O que dói é essa entradinha na loja que não dei, um lanche rápido que eu troquei pelas unhas feitas, aquela ligação no meio da tarde que eu ia dar, mas acabei me distraindo no Instagram. Não é minha festa de 40 anos que mais parece um casamento ou as bodas que eu nem sei se terei. São as banalidades.

É claro que houve várias outras vezes em que disse que não tinha tempo. Na maioria delas, não era bem assim. Se fosse algo urgente, eu teria dado um jeito. Mas olhar uma guirlanda não era urgente, era?

Depois que entendi como são sortudas as pessoas que têm as mães por tempo suficiente para valorizá-las – porque vamos falar a verdade, quase ninguém entende como é maravilhoso ter mãe ao menos até o fim da adolescência – a vida mudou muito. Até hoje, eu me ressinto do dia em que fomos à feira de ciências da escola e minha mãe resolveu colocar uma roupa muito colorida, muito verde, que hoje eu possivelmente até acharia bonita, mas naquele dia eu achei horrível. Praticamente a escondi, tentando evitar que alguém me associasse à figura florida, até que uma professora disse por trás de mim: "que bonita a sua mãe" e todo mundo olhou para aquela entidade. Verde.

É engraçado como podemos esconder a memória de algo por anos na nossa mente e de repente ela volta e não quer mais nos largar. Às vezes penso: nossa, fazia sete anos que não me lembrava dessa pessoa.

Depois que a feira de ciências retornou ao meu cardápio de sofrimentos aleatórios, eu tive um sonho que não é tão triste assim, mas foi um dos sentimentos mais tristes que eu já tive. Minha mãe, muito bonita e arrumada, sorrindo para mim, e caindo sem querer dentro de uma piscina. E enquanto caía me dava o olhar que acho que ela deu naquele dia em que eu tentei escondê-la, sem sucesso.

Não é só porque a gente não entrou para olhar a guirlanda e a porta acabou ficando sem, mas naquele ano o Natal não foi do mesmo jeito. E aquilo me deixou irritada, porque como é que uma droga de guirlanda pode fazer tanta falta assim. Toma, coloca esse enfeite ali, dá na mesma, não precisa estragar a noite por causa disso.

Hoje é feriado, não tem quase ninguém na rua, o trem está atrasado. Ainda não me perdi no restante da minha cabeça e a dor do buraco da guirlanda está aumentando.

Uma mulher com uma criança de uns 7 anos para do meu lado. Elas vão começar a conversar sobre a época e eu não vou aguentar. Será um daqueles momentos que mais parecem filme de fim de ano. Um daqueles que a minha mãe adorava assistir. O ano todo, não apenas de setembro ao carnaval.

Meu Deus, não pode ser, tem uma guirlanda na mão da menina.

Respiro fundo, tentando segurar a emoção pelo nariz. Inspira, expira.

- Você acha que a vovó vai gostar?

- Claro que não, sua vó é muito chata.

E eis que o cotidiano dá essa volta na gente e rio um pouco, no lugar de chorar.

- Poxa mãe, mas eu fiz na escola.

- Pior ainda, aí que ela não vai gostar mesmo, esse monte de fita colada.

A criança olhou para mim. Minha expressão certamente não estava das melhores, entre o riso, o choro e agora uma certa incredulidade.

- Tia, você gosta de guirlandas?

- Não sei se gosto. Mas acho que sua vó vai gostar sim.

A mãe me olhou quase com piedade.

Não me abati e continuei.

- Sua vó vai saber que você dedicou seu tempo para fazer esse presente para ela, então seu presente na verdade é o seu tempo. Que no fim das contas é a única coisa que a gente tem para oferecer para as pessoas. Eu me arrependo de não ter dado mais o meu tempo e encontrado uma guirlanda bonita como a sua.

A criança sorriu, satisfeita, enquanto a mãe a puxava para longe da maluca da estação.

Chorei, soluçando, um choro guardado desde o dia em que o telefone tocou para dizer que nunca mais eu entraria na loja de quinquilharia com a minha mãe de novo.

Era urgente aquela guirlanda. Viver é muito urgente.

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