Morte Sem Tabu

Morte Sem Tabu - Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
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Mente

Me perguntaram: o que você acha do Dia da Mulher?

Fiquei surpresa ao perceber que algumas mulheres não se sentem bem

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- O que você acha do Dia Internacional da Mulher? . A pergunta chegou esperando uma resposta questionadora, já que eu costumo ser uma pessoa desconfiada.

Minha resposta não durou mais do que 10 palavras: quando minha avó nasceu, a mulher era proibida de votar.

Esse dia não é, para mim, um momento de presentear flores e bombons. Não é um dia para galanteio, como o Dia dos Namorados, uma data comercial. É um dia criado para estimular passeatas, manifestações, discussões. Ressaltar as conquistas e avaliar o que ainda precisa ser feito. Refletir sobre as mudanças estruturais que estão em curso e as estagnadas. É um dia importante.

No dia internacional da Mulher, 8 de Marco Manifestação de mulheres e centrais sindicais no dia internacional da Mulher, em 8 de março de 2020 - Eduardo Knapp/Folhapress

- Qual seria o argumento para questionar esse dia? - retruquei. - Ah, dizer que todos os dias do ano deveriam ser nossos e não apenas um – respondeu minha interlocutora.

O 8 de março não é um dia de valorização das qualidades de uma mulher, ele é um dia político. Talvez, o que incomoda algumas mulheres ao meu redor é essa confusão. Acharem que o galanteio nos cala. Como se o GIF de uma mulher com mil braços, fazendo um monte de coisas ao mesmo tempo, fosse o suficiente para nos sentirmos valorizadas. Ou um poema dizendo que somos todas divas e inteligentes. Como se fosse um dia para ressaltar as qualidades de uma mulher.

Como um dia político, ressalto que neste ano batemos recorde de violência contra a mulher. Uma mulher é morta a cada seis horas no Brasil. No primeiro semestre do ano passado, foram quase 700. Uma média de 4 por dia, segundo dados do Fórum de Segurança Pública. É o homicídio chamado de feminicídio, quando uma pessoa é assassinada pelo seu gênero. Por ser mulher. Mais da metade, são mulheres negras.

É assustador pensar que de cada 10 agressões, 7 são cometidas por pessoas próximas, conhecidas, parentes, amigos. Essas mesmas pessoas que podem ter enviado poemas e GIFs ao acordar, desejando um feliz Dia Internacional da Mulher. Claro que também recebemos de quem nos quer bem. E esse carinho é bem-vindo quando parte de alguém que realmente torce e luta pelos direitos das mulheres. De quem reconhece os avanços obtidos até aqui. Eles não ocorreram naturalmente. A conquista de direitos foi uma luta, difícil, árdua, paciente. Ainda é.

Se eu tiver que questionar alguma coisa na existência do dia de hoje, será a grande ironia de recebermos um viva de alguns homens ao nosso redor que nos enxergam apenas como um objeto que pode ser usado e descartado. Se nem em casa a mulher está protegida, podemos dizer que, definitivamente, não há local seguro para a mulher. É dilacerante viver assim.

Cheguei à conclusão de que é isso que incomoda minhas amigas. A ironia. A transformação de um dia político em dia de galanteio. Mais uma vez, submissão.

Quando minha avó nasceu, as mulheres não podiam votar. Ela não tinha voz na decisão dos rumos da sociedade, e pior, ela não podia decidir sobre sua própria vida. O fato da minha avó ter feito uma graduação e se aventurar em uma profissão é motivo de orgulho, de glória. Minha avó escritora está em um pedestal.

Minha mãe lutou para ajudar a mudar esse cenário. Sua ferramenta é a cultura. Ela escreveu peças de teatro que questionavam a estrutura que ela via. "Fala Baixo Senão eu Grito", com uma protagonista vivida por Marília Pera, em seu início de carreira, soltou esse grito contido de incontáveis mulheres.

Minha mãe ia em passeatas que rasgavam o sutiã, participava de um grupo chamado FENEME, Frente Nacional da Mulher. Ao lado dela, Marta Suplicy, que tinha um programa muito importante na TV Mulher , a produtora teatral Ruth Escobar e a advogada Silvia Pimentel. Mulheres engajadas na política e na cultura brasileira. Queriam igualdade de oportunidades entre homens e mulheres.

A frase que minha mãe mais usa é: queríamos igualdade de oportunidades para podermos usufruir as nossas diferenças. O movimento feminista ajudou a mulher pegar seu destino pelas mãos.

Minha mãe engravidou nessa fase e eu fui chamada de a primeira filha das Fenemes. Meu coração rasga quando eu vejo os absurdos a que as mulheres são submetidas, como o pesadelo vivenciado pela atriz Klara Castanho.

Hoje, é um dia para relembrar conquistas e pontuar as que ainda estão por vir. O combate à violência contra a mulher é estrutural e a maior delas. O Dia Internacional da Mulher é uma conquista, mas está longe de ser uma comemoração.

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