Morte Sem Tabu

Morte Sem Tabu - Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
Descrição de chapéu Mente

Carta para Chico Buarque

Cantor recebe Prêmio Camões de Literatura do presidente Lula nesta segunda, 24

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Domingo passado foi o batizado da minha filha e uma tia contou que eu tinha 7 ou 8 anos quando ela colocou "O Grande Circo Místico" para eu ouvir. "Minha filha se chamará Beatriz", eu teria dito.

Não sei dizer quando defini que dificilmente seria mãe, mas que, se fosse, minha filha se chamaria Beatriz, uma das músicas mais bonitas que existem para o nome mais lindo que há. Sempre achei que este trecho tinha a cara da maternidade:

"Sim, me leva para sempre Beatriz

Me ensina a não andar com os pés no chão

Para sempre é sempre por um triz"

Chico Buarque ( Foto: Francisco Proner / Divulgação ) - Francisco Proner / Divulgação

Desde que Beatriz nasceu, acho cada vez mais. Aliás, espero que não se importe que eu continue cantando que é divina a vida da minha Beatriz, Chico. É que agora é tarde demais para mudar. Aliás, ela não me deixa colocar a sua versão, nem mesmo a do Milton, acredita? Apenas eu posso cantar sua música, desde a barriga, desde muito antes dela.

Se não tenho certeza de que já aos 7 sabia ser mãe da Beatriz, sei que, de fato, ouço suas músicas desde criança. Era bem novinha quando alguém me levou para assistir "Os Saltimbancos" no Quitandinha, em Petrópolis, e fiquei semanas refletindo sobre nascer pobre, mas nascer livre.

Na minha inocência, eu achava até que podíamos nos conhecer um dia. É que, segundo ouvi, meus pais foram visitar uma casa sua por aqueles lados quando estavam construindo a nossa. Pegar dicas de bom gosto, foi o que disseram.

Passei algum tempo sem pensar sobre a história da gata, até que fui morar em Bremen, na Alemanha, muitos anos depois, e pude enfim conhecer "Os músicos de Bremen", inspiração original dos seus Saltimbancos.

Cynthia posa com a irmã e a mãe, que segura um livro de "Os músicos de Bremen" e uma sacola com desenho do monumento oficial de "Os músicos de Bremen", em frente a uma estátua colorida dos músicos de Bremen, na cidade de Bremen, Alemanha (não se trata do monumento oficial de 1951)
Cynthia com a irmã e a mãe junto a uma estátua dos músicos de Bremen, em Bremen, na Alemanha - Foto de arquivo

Meu pai cantava "não se afobe não, que nada é pra já" quando eu estava começando a adolescência. Era só essa frase mesmo, para contextos diversos, e eu ainda demoraria um pouco a conhecer a música toda. Foi uma grande emoção quando você cantou "Futuros Amantes" já no finalzinho do show em Belo Horizonte, pelos idos de 2011.

Eu também era adolescente quando comecei a ganhar consciência social. Ali pelos 14, o professor de literatura do colégio fez uma análise de "Meu guri". "Já foi nascendo com cara de fome e eu não tinha nem nome pra lhe dar" é daquelas coisas que nos tiram do lugar e fazem a gente entender um país inteiro.

Não sou uma especialista nas suas músicas, não mesmo. Mas penso que sou um resultado delas. Das reflexões e vínculos que construí a partir delas.

Lembro-me bem do espanto que senti quando ouvi que "na bagunça do teu coração meu sangue errou de veia e se perdeu…". Tudo tão bonito, tão certo, parecia que estavam dando nome a um sentimento que só então eu começaria a entender.

Um tempo depois, alguém me disse que "João e Maria" era não uma música infantil, mas uma letra sobre regimes opressores. Talvez você discorde, mas, desde então, "Pra lá deste quintal era uma noite que não tem mais fim" se tornou a trilha sonora dos meus estudos de ditaduras.

Dentre outras várias, claro. Agora que sou a mãe da Beatriz, quase posso acessar a dor de quem canta que só queria embalar seu filho, que mora na escuridão do mar.

Falando nisso, nesses últimos anos cantamos como nunca o seu hino por excelência. "Apesar de você, amanhã há de ser outro dia".

Bom, parece que esse dia chegou. E vamos ver o amanhã renascer e esbanjar poesia.

Parabéns, Chico! Pelo Prêmio Camões e por cada uma das vezes que nos ensina o imenso poder das palavras. Foi por pessoas como você, que apesar de tudo e de todos, parecia possível fazer um filho, ver crescer um filho, criar um filho.

Que assim seja.

Com muito carinho e admiração,

Cynthia.

O músico Chico Buarque e sua mulher, a advogada Carol Proner, a socióloga Rosangela da Silva, a Janja, e seu noivo, o ex-presidente Lula em jantar com participantes do Encontro Internacional Democracia e Igualdade - Arquivo Pessoal

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.