Morte Sem Tabu

Morte Sem Tabu - Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
Descrição de chapéu Mente

Coveiro, minha vida na linha do desprezo

O último dia: a aposentadoria de um sepultador

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Osmair Cândido

Coveiro sente nas mãos e na alma o peso da morte e seus efeitos, cheiro de parafina mofo e urina, chuva, calor e granizo em toda sua pele, cheiro de cigarros e bebidas.

A má sorte pode reservar o seco do estampido dos tiros de pistolas se o enterro for de alguém ligado aos negócios nebulosos ou ilegais, pode também ouvir violinos, música não é coisa rara em enterros, porém a arte destina-se a quem se foi.

Em mim o rosto da ralé, de quem carrega o país nas costas no trem lotado, na caneca de sopa quase que jogada na cara na Praça da Sé, as moedas apanhadas uma a uma e guardadas com zelo para somar até virar passagem de trem.

Ralé para dormir no albergue, quarto coletivo cheio de miseráveis, basta esperar e logo aparecem as facas, pancadaria e o eterno cheiro de dejetos, todos sabem as regras e a lei da "quebrada" cada pega seu copo de café e o pão velho e segue no "piu" silêncio absoluto.

Andando da Barra Funda até a Avenida Dr. Arnaldo é preciso pressa e atenção. Cemitério tem caixa de surpresas, que é da ralé bem sabe, às vezes o trabalho ultrapassa nossa capacidade, são horas trabalhando, cavando e nada de comida.

 Retrato de Osmair Camargo Cândido, coveiro e filósofo
Retrato de Osmair Camargo Cândido, coveiro e filósofo - Felipe Larozza/UOL

Coveiro, minha vida na linha do desprezo, um mural de miséria abaixo do sol e dos olhos de quem dele sabe e finge não saber, às vezes são sete os dias de trabalho em uma semana, horas esperando o sol cair.

Minha existência é aqui na base da pirâmide social, no último degrau minha visão se amplia, posso saber melhor de detalhes, o mundo não se apequena como na visão de quem está no topo.

A minha chefe lembra a todos que este é meu último dia, mas a fala não me chega com o peso do significado, coveiro é e sempre será, difícil é ser ex coveiro.

Foram mais de três décadas exumando cadáveres, sepultando corpos e partes de corpos, guardando ossos, sentindo o desprezo de quase todo mundo, tratado como um quase cidadão, ganhando menos do que o suficiente para ser pobre.

Pauperismo, esquecimento, muitos enterros passam pela memória, uns latejam em minhas mais profundas dores, o enorme sofrimento em enterros de prisioneiros com o cemitério cercado de segurança.

Mães de presos gritando e pedindo aos céus os favores de Deus, a saliva que tive de engolir sepultando crianças sem poder chorar o quando meu coração mandava, engoli choro e a vontade de dizer toda revolta que senti e sinto até o presente.

Agora penso no número de sonhos meus que sepultei fora das covas, amores e amizades que tentei exumar sem o sucesso desejado, morto também fica um tanto quem percebe que a realidade enterra sonhos.

Deixei entre as covas domingos que eram meus, pedaços de encontros oportunidades de ver o pôr do sol no horizonte, a frescura do cheiro da cabriúva trazida pela brisa em Jundiaí.

Boa parte deste pouco que tenho se origina dos cemitérios, conheci diversas pessoas admiráveis,

Com bastante esforço terminei um curso de filosofia, lecionei em uma comunidade no Capão Redondo, alternava mais estudos com as covas, minha experiência de vida chamou atenção de muita gente.

Rompi madrugadas em trens lotados todos os dias de Jundiaí até São Paulo, a madrugada toda dentro destes trens até a Barra Funda vez ou outra sem comer absolutamente nada.

Vinha festejando ideias novas, recordando e escrevendo com zelo cada enterro que fiz, rindo das situações irônicas, mal-entendidos, excentricidades, mas rindo alto por perceber que precisava de pouco para tornar minha vida interessante.

Vinha meditando sobre os comportamentos das pessoas, operário da morte, assim antes fui chamado por muita gente, com a graduação virei: "O Coveiro Filosofo".

Durante três anos de pandemia o cemitério me disse o quanto aprendi trabalhando em um meio rude e simplório: "Dividir o pouco alimento não é bem dividir, é deixar que não falte a ninguém". Contei perto de vinte mil covas no cemitério de Vila Formosa, isolados os coveiros trabalhavam em linhas de até vinte homens abrindo covas enterrando e alternando as posições como em uma linha de produção.

Os corpos ficavam dentro dos carros fora do cemitério, jornalistas de todo mundo permaneciam ali fotografando anotando números, ninguém ousava entrar ou tocar nos portões.

O medo crescia entre os coveiros, trabalhar à noite seria arriscado demais, mas os corpos chegavam em grande número, máquinas já estavam abrindo covas também, exauridos e com muito medo os coveiros hesitavam em voltar para casa.

Pastor nem padre ninguém veio para dar alô, o serviço médico foi um improviso, muito raro era conseguir dormir sem remédios, mas auxílio psicológico veio de pessoas interessadas no bem-estar e aqui agradeço outra vez.

Meses de trabalho penoso, insalubre e enlouquecedor com raras folgas, a cidade de São Paulo foi epicentro da pandemia com 421 sepultamentos em um só dia, a televisão enfatizava os números de morte, de internados, de pacientes em corredores esperando atendimento.

Os coveiros contavam com a solidariedade de muitas pessoas que doavam cestas básicas, água potável e acenos de longe.

Muitos funcionários do Serviço Funerário foram a óbito durante a pandemia, eu senti um medo gigantesco de deixar minha esposa viúva, trabalhamos até os braços adormecerem, os pés exarcados pelo próprio suor doíam inchados pelo trabalho pesado.

Não recebemos bônus, hoje percebo que seria interessante receber por estes serviços um terço do que nos foi cobrado, sem equipamentos adequados e contando com a solidariedade da população e das organizações não governamentais.

Atravessei este período com doses de coragem e experiência, não embruteci exercendo a profissão, não recebi e nem espero receber um cumprimento pelo esforço feito no chão da maior cidade da América do Sul.

Eu que muito carreguei saudade pelos cemitérios hoje tenho certeza de que a saudade me carrega, vasculho todo cemitério, mas não encontro a cova que eu queria, pois não existe cova que comporte a saudade.

Se o cemitério do Araçá fosse pessoa eu o beijaria, não é e pouco importa te amo do fundo meu coração Araçá.

LINK PRESENTE: Gostou deste texto? Assinante pode liberar cinco acessos gratuitos de qualquer link por dia. Basta clicar no F azul abaixo.

  • Salvar artigos

    Recurso exclusivo para assinantes

    assine ou faça login

Comentários

Os comentários não representam a opinião do jornal; a responsabilidade é do autor da mensagem.