Morte Sem Tabu

Morte Sem Tabu - Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
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Existem Cuidados Paliativos no SUS?

Projeto de Cuidados Paliativos no SUS já chegou a 16 Estados brasileiros

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Você já ouviu falar em Cuidados Paliativos?

Para quem acompanha o blog, mesmo que há pouco tempo, a pergunta pode soar estranha, porque o assunto é recorrente. Mas para muitas pessoas, possivelmente a maior parte delas, a expressão vem acompanhada de confusão e desinformação.

Ainda existe uma equivocada ideia de que "cuidados paliativos são quando não há mais nada a fazer por pessoas que estão morrendo". Vejo sempre essa afirmação em comentários nas redes sociais, vindos até mesmo de profissionais de saúde, e sendo dita e escrita por comunicadores.

No fim do ano passado, quando o Pelé morreu e o assunto veio à tona com bastante força, escrevi sobre alguns erros comuns a respeito do tema. Uma das perguntas que respondi foi exatamente sobre se cuidados paliativos são para quem está morrendo.

A resposta é não. Na verdade, as evidências científicas que temos sobre o assunto mostram que os cuidados paliativos devem ser iniciados desde o diagnóstico de doenças que ameaçam a continuidade da vida, ou seja, doenças que podem levar – e levarão na maior parte das vezes – à morte. Mas mesmo pessoas com bom prognóstico e que optem por se tratar em busca desse bom prognóstico – se curar, viver muitos anos – são elegíveis para cuidados paliativos. E, independentemente disso, pessoas com doenças que ameaçam a vida raramente morrem de forma imediata, o que significa que, tantas vezes, até que a morte sobrevenha, há muita vida para ser vivida.

Os cuidados paliativos ajudam a viver essa vida da melhor forma possível e até por mais tempo. Eles são, portanto, acima de tudo, sobre viver, e não sobre morrer, embora a chamada "boa morte" ou "morte digna" seja uma parte importante do conceito.

E de que forma eles fazem isso? Tratamentos focam no combate a doenças. Os cuidados paliativos olham para a pessoa que existe independentemente delas. O ser humano, não apenas "o paciente", e seu círculo familiar, que serão cuidados por uma equipe multiprofissional (médicos, enfermeiros, assistentes sociais, psicólogos, fisioterapeutas, terapeutas ocupacionais, fonoaudiólogos, dentistas, farmacêuticos, nutricionistas), que tem por objetivo principal o alívio de seus sintomas físicos, psíquicos, espirituais, seja qual for a evolução da doença.

Infelizmente, o início precoce dos cuidados paliativos ainda está bem longe de ser realidade na maioria dos casos. Ou seja, a maior parte dos pacientes gravemente doentes que recebe cuidados paliativos só os terão no fim da vida – e a maioria morrerá sem ter acesso a eles.

Uma das principais culpadas por isso é a desinformação. Faltam recursos, falta investimento, falta capacitação e muitas pessoas que poderiam ser beneficiadas e terem suas vidas melhoradas, por maior ou menor tempo, são vítimas dessa falta. Ao mesmo tempo, mesmo profissionais de saúde e pacientes que estão em ambientes com sistemas de cuidados paliativos bem estabelecidos ainda resistem ao seu acesso, por acreditarem, de forma equivocada, que estariam abrindo mão de uma chance de tratamento ou cura.

Em todo o mundo, estima-se que apenas uma em cada 10 pessoas que precisam de cuidados paliativos tem acesso a eles.

A situação do Brasil, embora tenha melhorado um pouco nos últimos anos, é marcada por pouca consciência dos profissionais de saúde sobre a área, pouco engajamento da sociedade – e, na verdade, grande resistência –, além da subutilização de medicamentos para dor e a enorme desigualdade de acesso a cuidados paliativos entre as diferentes regiões do país, com concentração da maior parte dos serviços no Sudeste.

Muitas normas no SUS exigem a disponibilização de cuidados paliativos, mas nem sempre com efetividade. Ao menos desde janeiro de 2002, existe um Programa Nacional de Assistência à Dor e Cuidados Paliativos, instituído por meio da Portaria do Ministério da Saúde GM n. 19. Na oncologia, por exemplo, área que responde pela maior parte dos pacientes elegíveis, o acesso aos cuidados paliativos é exigido ao menos desde 2005, quando a Portaria MS/GM n. 2439 instituiu a Política Nacional de Atenção Oncológica. Na norma atualmente vigente (Portaria MS/SAS n.º 140/2014), acrescentou-se a previsão de que "os cuidados paliativos aos usuários atendidos pelos estabelecimentos de saúde habilitados de que trata esta Portaria são obrigatórios e devem estar descritos em plano de cuidados registrado em prontuário (…)" (artigo 17).

O desconhecimento que cerca o assunto inclui normas como essas, o que contribui para que seu cumprimento fique muito aquém do esperado.

Em novembro de 2018, comemorou-se a publicação da Resolução da Comissão Intergestores Tripartite n. 41, que dispôs sobre as diretrizes para a organização dos cuidados paliativos no SUS, em qualquer nível da Rede de Atenção à Saúde. À época, escrevi que também comemorava, mas que aspectos essenciais para a efetivação de uma política de cuidados paliativos haviam sido relegados à incerteza de normatizações posteriores, inclusive em relação a uma de suas necessidades centrais, que é a forma de financiamento.

Mas, recentemente, fiquei feliz por conhecer uma iniciativa que busca a efetivação direta de um dos objetivos dessa organização de cuidados, que é ofertar educação permanente em cuidados paliativos para os trabalhadores da saúde no SUS. Foi a partir dele que um Projeto de Cuidados Paliativos passou a ser desenvolvido, desde o início de 2020, com a coordenação do Hospital Sírio-Libanês. Ele tem o objetivo de capacitar equipes do SUS e implementar protocolos de cuidados paliativos em instituições determinadas. O projeto é iniciativa do Proadi-SUS, um programa de apoio ao desenvolvimento institucional do SUS com a cooperação entre o Ministério da Saúde e seis hospitais de referência do Brasil.

Até o momento, 68 serviços já participaram do projeto, que esteve em cidades de 16 Estados das 5 regiões do Brasil e no Distrito Federal, em ciclos de 10 meses de trabalho cada um.

O primeiro passo da iniciativa é realizar um diagnóstico do serviço para a definição dos planos de ação. Uma das responsáveis pela execução do projeto, a coordenadora médica Maria Perez Soares D’Alessandro, registrou que muitos dos serviços participantes já estavam fazendo trabalhos maravilhosos em relação aos cuidados paliativos e exaltou os profissionais do SUS.

A partir do diagnóstico, buscam-se ações para a sensibilização das instituições e dos profissionais de saúde sobre a importância de um programa multiprofissional de cuidados paliativos. A capacitação desses profissionais com treinamento teórico-prático aprofundado e apoio para a implementação de protocolos do serviço e de indicadores para monitorização de performance e qualidade da assistência são os objetivos principais do projeto.

A Dra. Maria Perez destaca a importância que a participação de instituições e profissionais de perfil replicador tem para a iniciativa. Ela afirma os excelentes resultados em relação a esses profissionais, que reportam um aumento de segurança para realizar os cuidados paliativos, especialmente na fase final da vida.

Por enquanto, os pacientes beneficiados estão em suas semanas e dias finais de vida, mas a mudança de cultura de cuidado e de um olhar que se volte para a pessoa que existe por trás da doença é um passo importante para que o referenciamento precoce, em que os cuidados paliativos muitas vezes não são exclusivos, venha a acontecer.

Para Kassyla Ferreira dos Santos, enfermeira e coordenadora do escritório de qualidade do Hospital Estadual Alberto Rassi, de Goiânia (GO), o projeto "veio para desconstruir uma ideia que já era fixa de que os cuidados paliativos são restritos a uma fase final de vida do paciente, a um único setor e a uma única equipe médica. As pessoas tomaram consciência de que os cuidados paliativos podem ser feitos até no ambulatório de atendimento, desde o momento de internação até a alta do paciente".

Para ela, os impactos positivos da iniciativa ainda demorarão a ser conhecidos, mas um ganho importante já foi alcançado: a habilitação do programa de residência médica de cuidados paliativos do hospital, a primeira em Goiás.

Profissionais de saúde de máscara estão reunidos em auditório
Equipe do projeto Cuidados Paliativos, do PROADI-SUS, no Hospital Estadual Alberto Rassi (GO) - Divulgação

A musicoterapeuta Elvira Alves dos Santos, do Serviço de Atenção Domiciliar-SAD do Centro Estadual de Reabilitação e Readaptação Dr. Henrique Santillo, também em Goiânia/GO, vai além:

"Nós ficamos 10 meses com o projeto. Ele é no mínimo um sacode para a equipe. A gente começa a perceber que sempre pôde oferecer estes cuidados, fazer de maneira adequada, de maneira efetiva, baseada em evidências. As pessoas passaram a enxergar que o SAD é um setor paliativista, que existe essa demanda muito grande, o que antes não era enxergado. Isso passou para o hospital também, essa capacidade de enxergar mais rápido. Antes a gente não tinha onde buscar ferramentas de indicação, planos de cuidados, diretrizes. E o que melhorou muito foi na comunicação de más notícias, que impacta também na aceitação das atividades propostas".

Nos últimos meses, teve início o movimento "Frente de Cuidados Paliativos pelo Brasil", com o objetivo de unir forças para participar das Conferências Municipais, Estaduais e Livres de Saúde e propor a criação de uma Política Nacional de Cuidados Paliativos. A ideia é promover um engajamento social, e não apenas dos profissionais de saúde.

Daniel Fortes, médico paliativista e integrante do Projeto de Cuidados Paliativos pelo Hospital Sírio Libanês, espera que o movimento prospere e ganhe força. Para ele, os cuidados paliativos são uma competência que os profissionais de saúde precisam desenvolver, mas, mais do que isso, são um movimento que precisa partir de diversos setores da sociedade. Apenas um engajamento verdadeiro da sociedade poderá levar às mudanças necessárias para que os cuidados paliativos alcancem as pessoas que precisam deles, inclusive as destinações orçamentárias.

O blog Morte sem Tabu é um dos apoiadores desse movimento. Para que consigamos os recursos humanos, técnicos, estruturais e tecnológicos necessários para que os cuidados paliativos sejam devidamente prestados, precisamos que as pessoas os entendam e os desejem. Eu, particularmente, não acredito em mudanças que acontecem apenas de cima para baixo. Nós temos, há algum tempo, normas que exigem que cuidados paliativos sejam oferecidos, de forma obrigatória, e, ainda assim, temos uma população inteira de médicos e pacientes que estão dispostos a recusá-los. Precisamos de investimento em formação médica de qualidade e de políticas de conscientização a respeito de cuidados que expõem os limites da medicina em relação a doenças – mas não em relação a pessoas.

Erramos: o texto foi alterado

O nome da enfermeira e coordenadora do escritório de qualidade do Hospital Estadual Alberto Rassi é Kassyla Ferreira dos Santos.

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