Morte Sem Tabu

Morte Sem Tabu - Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
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Cuidados Paliativos: verdades e mentiras

6 confusões frequentes sobre cuidados paliativos

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Nas últimas semanas, as notícias sobre o estado de saúde de um dos brasileiros mais conhecidos no mundo inteiro, Pelé, provocaram muitas discussões sobre os chamados "cuidados paliativos".

O assunto chegou ao Twitter e, como tudo que viraliza por lá, gerou todo tipo de comentário. Muitos deles tiraram o sono de pessoas que se dedicam ao seu estudo.

Aquele sentimento de "Mas que absurdo, não é assim!"

Meu principal incômodo nem foi ver tantas pessoas fazendo afirmações equivocadas sobre o tema. Acho até natural, porque entre o conceito de cuidados paliativos – o que eles realmente são e como devem ser oferecidos – e o que muita gente já experienciou acreditando que eram cuidados paliativos vai uma longa distância.

O que me preocupou especialmente foi ver pessoas realmente interessadas no assunto fazendo afirmações inadequadas.

Conhecer mais e melhor os cuidados paliativos é central para que consigamos democratizar o seu acesso, extremamente desigual, no Brasil e no mundo.

Por isso, embora já tenhamos falado sobre o assunto muitas vezes no Morte Sem Tabu e existam artigos excelentes sobre ele aqui na Folha, achei interessante tocar nos pontos que mais me chamaram a atenção nos últimos dias.

Antes disso, queria tentar resumir, rapidamente, o que podem ser cuidados paliativos na prática. Algumas pessoas dizem não entender exatamente o que eles significam para o paciente. Os cuidados paliativos são o conjunto de cuidados prestados por uma equipe multidisciplinar, formada por profissionais de diversas áreas - medicina, enfermagem, nutrição, fisioterapia, terapia ocupacional, farmácia, psicologia, odontologia, assistência social, fonoaudiologia, assistência espiritual - que buscam prevenir e aliviar o sofrimento de todas as ordens dos pacientes e de seus familiares.

"Mas em um hospital, há todas essas pessoas, qual a diferença?"

A comunicação e o trabalho realizado em equipe são os aspectos centrais dos cuidados paliativos. Não se trata de ter ou não o acesso a um outro profissional, mas de ser visto não como uma doença a ser tratada, mas como um ser humano que sofre e precisa ser cuidado. Esse cuidado, para permitir a melhor qualidade de vida possível, deve ser feito por uma equipe que se especializa na comunicação e no manejo de sintomas de pacientes com doenças graves, e discute junto o que é melhor para cada paciente dentro de sua área de atuação, a partir dos valores individuais da pessoa que está doente, os quais ela ajuda a evidenciar.

Manejar bem sintomas de diversas ordens e efetivar uma comunicação adequada com pacientes graves exige técnica, especialização, e não apenas vontade ou empatia. Creio que esse é o verdadeiro cerne dos cuidados paliativos.

Cuidados paliativos são para pessoas que estão morrendo?

Cuidados paliativos são para pessoas com doenças graves, que possivelmente levarão à morte – e de fato levarão em grande parte dos casos. Não é estar em cuidados paliativos ou não que fará isso: é a doença.

Mas não, cuidados paliativos não são (só) para pessoas que estão morrendo.

Realmente, muitas pessoas entrarão em cuidados paliativos muito perto da morte e receberão apenas uma parte (também importante) desses cuidados, que chamamos de cuidados de fim de vida. Merece registro que cuidados de fim de vida estão longe de se resumir a dar morfina e sedar o paciente.

De todo modo, eu, particularmente, não gosto de chamar de morte as semanas ou meses finais da vida de uma pessoa que está vivendo – e tantas vezes se comunicando com suas pessoas queridas, assistindo a seus filmes favoritos, comendo comidas gostosas, e, quem sabe, até deixando parte importante do seu legado. Alguém que descobre uma doença grave, inicia cuidados paliativos e morre um mês depois, para mim, viveu um mês em cuidados paliativos.

Mas, na verdade, as evidências científicas demonstram que os cuidados paliativos devem ser iniciados desde o diagnóstico das doenças ameaçadoras da vida, o que significa que mesmo pessoas com bom prognóstico e que optem por tratamentos contra essas doenças também devem ser pacientes de cuidados paliativos.

Os tratamentos focam no combate a essas doenças. Os cuidados paliativos olham para a pessoa que existe ali: o ser humano, não o paciente, além de seu círculo familiar, que serão cuidados por uma equipe multiprofissional (não apenas um médico ou uma médica paliativista), que tem por objetivo principal o alívio de seus sintomas físicos, psíquicos, espirituais, seja qual for a evolução da doença.

Infelizmente, esse início precoce dos cuidados paliativos ainda está bem longe de ser realidade na maioria dos casos. Ou seja, a maior parte dos pacientes gravemente doentes que recebe cuidados paliativos só os terão no fim da vida – e a maioria morrerá sem ter acesso a eles.

Existe uma grande resistência, tanto de médicos quanto de pacientes, ao referenciamento para cuidados paliativos, exatamente pela associação que se faz ao fim da vida.

Mas o que é fim da vida? A depender da doença que acomete o paciente, ele pode viver relativamente muito tempo, estando ou não em cuidados paliativos e iniciando ou mantendo-se ou não em tratamento. Mas se serão 2 meses, 2 anos ou mesmo mais do que 5, ainda assim será o fim da sua vida, certo?

Mesmo que o prognóstico não se altere, a vida que se pode levar até que sobrevenha a morte pode ser totalmente modificada pelo referenciamento aos cuidados paliativos o mais cedo possível.

Cuidados paliativos são para casos de câncer?

Como dito, os cuidados paliativos são para casos de doenças ameaçadoras da vida, portanto não se resumem aos casos de câncer. Mas, sim, a maior parte dos pacientes em cuidados paliativos, exclusivos ou não, é de pacientes com câncer.

Em outros casos para os quais seriam indicados – doenças cardiovasculares e renais graves, por exemplo – existe uma grande dificuldade de prognosticar e saber quais pacientes podem se beneficiar mais ou menos dos cuidados paliativos. Além da resistência ao referenciamento de pacientes que possivelmente evoluirão bem, muitas vezes morrendo de outras coisas, a realidade de que inexistem equipes suficientes para os cuidados de todos os pacientes que deveriam estar em cuidados paliativos acaba interferindo nas decisões.

No tabloide inglês The Sun, 'preocupação com herói' Pelé que já não responde ao tratamento contra câncer.Foto: Reprodução - Reprodução

As pessoas em cuidados paliativos podem fazer quimioterapia?

Os cuidados paliativos devem ser fornecidos logo no diagnóstico das doenças ameaçadoras da vida, com bom ou mau prognóstico. Quando isso acontece, ou seja, quando os cuidados paliativos começam de forma precoce, é provável que tratamentos contra a doença também sejam manejados. Dentre esses tratamentos, nos casos de pacientes oncológicos, frequentemente está a quimioterapia.

Portanto, entrar em cuidados paliativos não quer dizer não iniciar ou interromper tratamentos.

Mas, ao contrário do que muita gente acredita, nem toda quimioterapia tem o potencial de curar o paciente. Na verdade, a maior parte dos pacientes descobre seus cânceres em estágio avançado, quando já não existe prognóstico de cura. A impossibilidade de cura, assim, não é consequência da ausência de resposta ao tratamento, já que cura nunca foi o seu propósito.

A esses tratamentos damos o nome de tratamentos paliativos. Essa é, na minha opinião, uma das grandes confusões nesse assunto. Nem tudo que é paliativo é cuidado paliativo. Quando dizemos que alguém interrompeu um tratamento e está em cuidados paliativos, não estamos dizendo que havia chance de cura e agora não há mais. A maior parte desses pacientes nunca sequer iniciou um tratamento curativo.

Nesses casos, o tratamento paliativo, que são muitas vezes as quimioterapias paliativas, pretende, em tese, aumentar a sobrevida global (viver mais) ou melhorar a qualidade de vida (viver melhor). Infelizmente, a maior parte deles não têm mostrado esses benefícios e, quando o fazem, são apenas marginais (um mês de sobrevida, por exemplo, muitas vezes acompanhado de piora na qualidade de vida).

Por isso, geralmente, as medidas de conforto representadas pelos cuidados paliativos (como exemplos, o manejo da dispneia, do delirium, da obstipação) estarão em sentido contrário a esses tratamentos paliativos, que podem ser quimioterapia, hormonioterapia, cirurgias.

Quando o paciente está em cuidados paliativos exclusivos, é porque o tratamento curativo parou de ter resposta?

Existem várias possibilidades para o início dos cuidados paliativos exclusivos, ou seja, cuidados paliativos não acompanhados de tratamentos para a doença.

Muitas pessoas nem mesmo iniciarão tratamentos curativos, seja porque inexistem para o seu caso, como vimos antes, seja porque não estão dispostas a se submeter a eles.

Ainda que pareça absurdo para muitos de nós, muitas pessoas recusam tratamentos que, teoricamente, poderiam curá-las. Isso pode ser muito influenciado pela improbabilidade de sucesso do tratamento, pela idade, pelas condições da vida, por perdas ao longo do caminho.

Há pessoas que se recusam a voltar para uma UTI, por exemplo, simplesmente porque não suportam o que viveram lá. Há pessoas que já tiveram doenças graves não estão dispostas aos efeitos colaterais de tratamentos a que já se submeteram antes.

Essa decisão pode mudar? Sempre pode. E estar assistido por uma equipe de cuidados paliativos é determinante para auxiliar na compreensão dos valores de cada um e quais as melhores opções terapêuticas para que eles estejam no centro do cuidado.

Portanto, um paciente pode iniciar cuidados paliativos exclusivos sem nunca ter estado em tratamento algum, como ele pode iniciar cuidados paliativos exclusivos já tendo estado em tratamento antes, curativo ou não. Nesses casos, se os cuidados paliativos foram iniciados desde o diagnóstico, eles passarão a ser chamados de exclusivos, porque houve interrupção do tratamento, não no sentido de causa e efeito, mas apenas porque passaram a ser fornecidos sem que haja tratamento concomitante.

Há também os pacientes que são referenciados tardiamente para os cuidados paliativos, ou seja, apenas depois de se submeterem e interromperem tratamentos definitivamente. Como visto, esse não é o cenário ideal, mas, ainda assim, muitos pacientes se beneficiarão desses cuidados, mesmo que, muitas vezes, aconteçam apenas na reta final da doença.

Cuidados paliativos aumentam a sobrevida global?

Existem estudos que demonstram aumento de sobrevida para pacientes com câncer em cuidados paliativos precoces, comparados aos pacientes que fizeram apenas tratamentos paliativos. Há quem discorde, no entanto, dessa associação como razão para convencer sobre a importância dos cuidados paliativos.

Embora alguém possa dizer que o aumento no tempo de vida ajude a conscientizar acerca da essencialidade dos cuidados paliativos desde cedo, concordo com a reflexão. Naqueles casos em que os estudos eventualmente demonstrarem não haver relação entre manejo precoce dos cuidados paliativos e aumento na sobrevida global, seguiremos reconhecendo a sua importância pelo que eles devem representar, melhorando a vida do paciente e de sua família, dure ela quanto tempo durar? Ou acabaremos por minimizar o seu impacto?

Não era melhor mudar esse nome?

Embora a origem etimológica da expressão "cuidados paliativos" não remeta ao paliativo que costumamos associar a "remendo" ou "o que não dá para consertar", o fato é que chamar o cuidado de paliativo gera uma impressão ruim a grande parte das pessoas. Por isso, muitos pesquisadores preferem outros termos, como "cuidados suportivos".

A troca de nome, no entanto, também tem seus problemas, em razão da novidade a seu respeito.

De todo modo, ao menos no contato individualizado de cada equipe de saúde com o paciente, falar em cuidados suportivos pode ser mais acolhedor.

É difícil esgotar todas as variáveis que podem prejudicar o entendimento sobre os cuidados paliativos. Se você tiver alguma dúvida, ficaremos felizes em colaborar, aqui nos comentários, no Instagram ou no Twitter: @mortesemtabu_

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