Morte Sem Tabu

Morte Sem Tabu - Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
Descrição de chapéu Mente

Não havia um segundo de distração dessa tristeza profunda

O problema nem era tanto a intensidade, mas a constância

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Mulher sentada em uma sala vazia com os braços e o rosto sobre os joelhos
Mulher triste de cabeça baixa sentada sozinha em uma sala vazia - stokkete - stock.adobe.com

Eu tinha 17 anos.

Não era a primeira vez que tinha me aproximado do abismo. Desde criança eu entendi que, de tempos em tempos, minha cabeça imporia ideias que se repetiriam incessantemente e trariam muito sofrimento.

Mas foi a primeira vez em que caí. Profundamente.

Não era nem (só) a intensidade da tristeza. O problema era a constância. Não havia um segundo em que eu conseguisse me distrair dela. Nem um mísero segundo.

No início, houve a esperança de que, um dia, acordaria sem dor. Então entendi que as manhãs seriam sempre as horas mais difíceis.

Chamo de primeira crise aquele período que durou um longo ano. E mais alguns meses.

Depois de algumas semanas do mesmo jeito, comecei a fazer cálculos. Nunca tive ideação suicida, então me perguntava por quanto tempo eu viveria. E se eu tivesse que passar mais de 50 anos sentindo aquela dor, o tempo todo?

Eu me comparava a pessoas com vidas difíceis, em situações desesperadoras e pensava que talvez elas não estivessem tão mal. "E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu", como disse um dia Fernando Pessoa.

A terapia só me faria entender alguma coisa muito tempo depois de parar com ela. Também demorei a entender que medicamento não tinha efeito imediato. Não foi nem uma coisa nem outra que me salvou, embora hoje eu saiba que elas poderiam ter ajudado mais.

Quatro meses depois da queda, em janeiro de 2002, sentada no ônibus que me levava para o cursinho pré-vestibular, em Belo Horizonte, olhei pela janela. E, por alguns segundos, talvez minutos, esqueci. Não houve dor ali. Houve apenas ausência. Não sei se pensei em alguma coisa. Se observei uma árvore, o clima, um prédio, uma criança no colo do pai. Se simplesmente esvaziei a cabeça, mas fato é que não senti dor.

Essa distração na janela é até hoje um dos momentos mais importantes da minha vida. Foi a partir dela que eu acreditei que, mesmo que aquilo durasse uma vida inteira, haveria descansos. Às vezes mais curtos, outras mais longos, mas haveria pausas.

Quando os momentos de dor já não eram mais a maioria, quase me acostumei com a ideia de que minha nova vida era assim.

Depois de mais de vinte anos, agradeço por ter acontecido tão cedo. Por ter entendido logo que haveria minutos, depois horas, depois semanas, e então meses de não-dor, mesmo que sempre parecesse impossível sobreviver depois de ver de perto tantos demônios que minha mente insistia em criar.

Eu queria ser assim? Não queria. Questões de saúde mental nos deixam exaustos, provocam dores físicas. Dores para as quais não há morfina que ajude.

Mas não vou dizer que não fez diferença positiva na minha vida. Consciente de que de tempos em tempos ela vai ficar relativamente suspensa e que, por mais que eu me esforce, estarei presa dentro de mim, comecei a aproveitar mais os dias normais. Dias em que eu apenas posso fazer coisas normais, rir de verdade, chorar de verdade, ficar chateada, irritada só porque não encontrei uma roupa que queria colocar na mala para viajar, e até me distrair de mim mesma. Participante da minha vida, e não espectadora dela.

Não tenho nenhuma pretensão de ajudar outras pessoas com este texto. Mas sei que talvez faça sentido para alguém. Porque sempre penso que, se eu tivesse entendido logo que há outras pessoas, diversas pessoas, centenas de milhares de pessoas que dividem dores parecidas, quem sabe até os mesmos pensamentos impensáveis e sentimentos insentíveis, talvez, por alguns instantes, eu me sentisse, se não melhor, menos estranha. Mais humana.

Escrevo, também, mesmo assumindo os riscos da exposição de falar sobre questões de saúde mental - que, conforme maior revisão mundial sobre o assunto, divulgada pela OMS (Organização Mundial da Saúde) há um ano, atingem aproximadamente 1 bilhão de pessoas -, porque gosto de lembrar que isso não resume ninguém. Não é isso que vai determinar se alguém é bem ou mal sucedido no amor, na profissão, na vida. E é possível ser feliz. Eu me considero uma pessoa muito feliz.

Desejo para quem também enfrenta os seus demônios que, quando você ficar triste, que seja por uns dias, e não um ano inteiro. E que você descubra que rir é bom. Eu sei o que é passar um ano inteiro triste, de uma tristeza profunda, vinda de dentro, tantas vezes sem causa aparente e, muito provavelmente, sem cura. E, ainda assim, encontrar e reencontrar a felicidade quantas vezes for preciso.

No fundo, acho que o que me salvou aos 17, e continua me salvando, foi acreditar naquela frase retórica que dizem quando não há mais muita coisa para dizer: vai passar. E tem passado.

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