Morte Sem Tabu

Morte Sem Tabu - Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
Descrição de chapéu Mente

E se a morte não existisse mais?

'Morte': Carlos Ruas e Guilherme Bon desenham um mundo em que a vida não acaba

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"O medo da morte pode ser angustiante para alguns, mas por que a eternidade também não seria?" – Carlos Ruas

Quando os jornais anunciaram o fechamento da Livraria Cultura, no coração da Avenida Paulista, eu fiquei aliviada de ter dado tempo de levar minha filha lá.

Depois de quase três anos de pandemia, era a primeira vez da Beatriz na cidade e a Cultura foi um dos lugares que fiz questão que ela conhecesse, do alto de seus 18 meses, já muito entusiasta dos livros.

A loja chegou a ser esvaziada, mas, quando voltamos à cidade em abril deste ano, tudo parecia igual. Bem, quase.

O espaço tinha virado uma espécie de bienal do livro, com tudo separado por editoras. Não dava mais para circular livremente pelos andares e no final pagar tudo junto.

Foi apenas por isso que eu encontrei o livro "Morte", dos irmãos ilustradores (dentre várias outras artes) Carlos Ruas e Guilherme Bon. Estava indo pagar alguma coisa quando o vi em meio a mais um monte de outros livros de quadrinhos - eu que não sou particularmente alguém que busca quadrinhos em livrarias.

Um desenho típico da morte com sua foice ilustrado na capa e eu logo pensei "curioso, um livro sobre morte assim tão literal que eu não conheço, que ninguém sugeriu para o Morte sem Tabu ainda".

Passei o olho na história e fiquei ainda mais encafifada. Mataram a morte nesse livro e eu nunca ouvi falar nele. Quem diria.

Antes mesmo de chegar às primeiras páginas, a dedicatória me pegou: "Para Zaya. Sua vida é sua. Gostaria de estar aqui para ver o que fará com ela".

Eu poderia ter escrito isso para minha Beatriz. Eu queria ter escrito isso para minha Beatriz.

Depois que ela nasceu, minha relação com a minha própria morte, que parecia andar bem, ficou bastante abalada. E nem é pelo que as mães costumam temer: sobre quem cuidará dos seus filhos, se cuidarão bem, caso elas morram. Não tenho esse receio, sei que se acontecer algo comigo, minha filha estará em ótimas mãos. Mas me dá um certo desespero saber que eu posso não estar aqui para ver o que minha filha fará com a vida dela, o que irá ser e se tornar.

E foi assim que já na dedicatória eu resolvi que precisava falar com os autores – e eles receberam meu pedido de entrevista com muito carinho e generosidade.

"Morte" é um dos melhores livros que já li, não apenas sobre o assunto. Um livro que encontra eco em sentimentos e reflexões que nós não conseguimos explicar bem, mas de repente vemos ali desenhados - literalmente. A história é maravilhosa, engraçada, leve, surpreendente e ao mesmo tempo óbvia, daqueles óbvios que fazem a gente exclamar "é isso!". E nos obriga à nem sempre desejada reflexão sobre o que seria a vida sem a perspectiva de morrer: o que você faria com seu tempo se ele não fosse terminar nunca?

A seguir, alguns trechos da obra e a minha conversa com Carlos Ruas e Guilherme Bon:

Os irmãos Carlos Ruas e Guilherme Bon posam com seu livro "Morte". Eles estão sentados e abraçados. O primeiro veste uma camiseta branca com camisa xadrez amarelo e preto aberta por cima. O segundo está de camiseta preta com detalhe azul e veste uma camisa preta aberta por cima. Ambos usam óculos.
Irmãos Carlos Ruas e Guilherme Bon com seu livro "Morte" - Bruna Fairbanks

"Assim, não me leva a mal, eu gosto pra cacete de viver. Agradeço a chance de conhecer e ver crescer as novas gerações da minha família. Não quero morrer hoje e provavelmente não vou querer quando chegar o dia. Agora, pensar que vai durar pra sempre é o tipo de coisa que te deixa maluco"

Por que falar sobre morte?
Carlos Ruas Eu gosto de trabalhar questões existenciais em minhas criações, há mais de 13 anos brinco com isso com minhas tirinhas do ‘Um Sábado Qualquer’. Meu irmão cursou filosofia e também é desenhista. Quando resolvemos criar uma obra juntos, tiramos da gaveta uma esquete em que um grupo de velhinhos fazia uma emboscada e matava a morte, esse foi o start para nos debruçarmos sobre um livro com essa temática tão delicada.

Guilherme Bon A ideia ficou na nossa cabeça por muitos anos, desde o momento inicial quando morávamos juntos até passar no Proac dez anos depois, qualquer coisa que a gente consumia que fosse remotamente ligada à finitude e imortalidade fazia tocar um sininho na nossa cabeça e potencialmente provocar conversas e mudanças no roteiro.

"Eles dizem que dá pra morrer de queda, de doença, de parada cardíaca, de tiro, de ataque de tigre, quer dizer... a lista não acaba"

O que sobressai na história, o drama ou a comédia?
Guilherme Bon Não queríamos criar algo mórbido, mas lidar com a questão da morte com leveza; com drama, mas também com comédia. O fato de trabalharmos com humor e termos conteúdos que refletem sobre questões existenciais em nossas profissões colaboraram para a concretização deste livro dessa forma.

Carlos Ruas É um assunto delicado, a gente queria que o livro fosse leve, tivesse bastante comédia, e tem, mas sem subestimar o tamanho do tema, sem ser condescendente com o público, a gente quis falar a verdade, esse é um livro sobre morte, e morte é um negócio complicado, doloroso, ao mesmo tempo esperamos que o leitor se divirta um bocado lendo, acho que compartilhar essas angústias com humor é uma boa forma de navegar nesse assunto.

"Na Matemática, dizem, infinito sempre bagunça as coisas. Metade de infinito ainda é infinito. Ocorre ao infinito encapsular outro infinito e não ser nem maior nem menor que sua parte"

Algum luto pessoal de vocês ajudou a compor o livro?
Guilherme Bon Quando eu tinha 17 anos tive três encontros muito próximos com a morte, um quase sendo levado pela correnteza de um rio, outro quando perdi minha madrinha, e depois quando aconteceu uma tragédia na minha cidade (Friburgo, região serrana do Rio), tudo num espaço de alguns meses. Acho que essas experiências sacudiram um pouco as coisas aqui dentro, trouxeram um senso de angústia, mas também perspectiva, uma acepção de mundo em que eu tento aproveitar cada momento; bem, tento.

Carlos Ruas Eu nunca tive perdas próximas em minha infância ou adolescência, só passei a pensar na morte depois de meus 25 anos, quando percebi que não era imortal, e que assim como os velhinhos da família, um dia, eu seria um deles. Isso me gerou muitas preocupações existenciais.

"Como vocês conseguiam viver normalmente sabendo que iam desaparecer um dia?"

O que a gente faz com o medo de morrer?
Carlos Ruas Meu avô acabou de completar 95 anos e seu comentário diante o bolo foi: "Tenho um puta medo de morrer!". Essa curiosa frase me fez refletir. Quase um século de existência e o medo da morte ainda está presente em sua vida, intacto, como se nunca tivesse mudado. O quanto isso é bom? Vê-la se aproximar a cada ano e nunca querer encarar seus olhos. O que é melhor, passar a vida com medo ou tentar aceitar?

Guilherme Bon Eu fico muito sensível com qualquer pessoa que eu admiro falando com franqueza da própria morte. O último capítulo do "Bilhões e Bilhões", do Carl Sagan, do qual a gente até coloca um trechinho no livro ("Na verdade, quase morrer é uma experiência tão positiva e construtora de caráter, que a recomendaria a todos – não fosse, é claro, o elemento irredutível e essencial do risco"), e um artigo e a autobiografia do Oliver Sacks sempre me tocaram e de certa forma contribuíram pras reflexões que levaram a escrever essa história. Se a gente fez nosso trabalho direito, o livro não resolve nada, cada leitor pode ter uma sensação diferente, mas há uma comunhão, porque acompanhar a história desses personagens é uma maneira de olhar nos olhos, compartilhar com humor o fato de que inevitavelmente estamos todos no mesmo barco e investigar o que é estar vivo aqui e agora.

"Imortalidade sempre tava nos seus planos, você é católico, cacete! Sempre achou que em algum momento ia viver pra sempre!"

A religião ajuda?
Guilherme Bon Acho que resolver de uma vez por todas a pergunta fundamental do que acontece com a gente quando nós morremos é um dos maiores apelos das religiões. Por isso que em um mundo sem a morte imaginamos que as religiões fiquem em baixa. Embora existam algumas pessoas, como alguns dos nossos protagonistas, que tiram uma conexão mais profunda da religião, um modo de vida, um senso de identidade.

Carlos Ruas É uma pena ter que ir para a ‘não existência’ e deixar todos os nossos prazeres, felicidades, momentos, descobertas, consciência, chocolate... tudo para trás. Não é fácil lidar com isso, com essa angustiante injustiça, e é exatamente aí onde a religião entra, oferecendo um alívio existencial, uma fuga desta angústia, pois ela nos promete aquilo que mais queremos ouvir "vida pós a morte!", e cada fé nos oferece um pacote de vantagens melhor que a outra, com eternidade, reencarnação, virgens, descanso eterno, carma, castelos com infinitas farturas... Uma pena que nunca tivemos evidências da existência desses reinos encantados, mas nos agarramos a essas promessas como uma criança agarra a perna da mãe diante de uma visita estranha, no caso, a visita da morte.

"Tem noites inteiras que passo sem dormir. Outras vezes, durmo por uma semana. Não tem nenhum motivo para se fazer qualquer coisa, nenhuma urgência. Isso não é natural"

Viver é urgente?
Carlos Ruas O filósofo francês Montaigne defende que precisamos nos preparar para a chegada da morte: "Aprendamos a enfrentá-lo [esse inevitável fim] de pé firme e a combatê-lo. E, para começar a roubar-lhe sua maior vantagem contra nós, tomemos um caminho totalmente contrário ao habitual. Eliminemos-lhe a estranheza, trilhemo-lo, acostumemo-nos a ele (...) E diante disso enrijeçamo-nos e fortifiquemo-nos" Quem sabe assim, em vez de tentarmos fugir da morte, quando ela chegar, poderemos convidá-la para um chá?.

"Quando uma pessoa morria, o que vocês faziam com o corpo dela?"

Por fim, o começo sobre a dedicatória para a Zaya, que me tocou tanto! Quem é Zaya?
Guilherme Bon Poxa, que bom que gostou da dedicatória. Pouca gente toca no assunto, mas é uma das partes que me emocionou bastante na hora que estávamos escrevendo, não sei dizer exatamente o porquê. E feliz que te fez pensar na sua filha, em parte é essa intenção mesmo. Zaya é a personagem do livro, tataraneta do Alcino, mas também são nossos sobrinhos (temos nove), assim como o leitor, ou quem quer que o leitor imagine no coração cumpre esse papel.

Irmãos Carlos Ruas, de óculos, camiseta preta e camisa xadrez preta e amarela, e Guilherme Bon, de óculos, camiseta vermelha e camisa preta, estão sentados à mesa na Livraria Martins Fontes, em São Paulo, com seu livro "Morte" à frente no dia do lançamento
Irmãos Carlos Ruas e Guilherme Bon lançam seu livro "Morte", na livraria Martins Fontes, em São Paulo - Editora Conrad

O livro "Morte" foi lançado pela Editora Conrad em outubro de 2022. É a primeira graphic novel conjunta de Carlos Ruas e Guilherme Bon e contou com as coloristas Natália Marques e Manda, além das cores da capa por Frank Martin.

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