Morte Sem Tabu

Morte Sem Tabu - Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
Descrição de chapéu Mente Todas

Os lutos de Paul McCartney

Quando um artista evoca seus mortos no palco, nos permite fazer o mesmo

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São Paulo

Allianz Parque lotado. Um mar de lanternas de celulares. Uma tempestade sem trégua, do começo ao fim do show. E um Paul McCartney aos 81 anos cheio de energia, quase 40 músicas, em duas horas e meia.

Não sabia que iria ao show do Paul. Comprei o ingresso para o último em São Paulo aos 45 do segundo tempo, no sábado de madrugada, enquanto viajava para Aparecida do Norte com a família.

Em minha lembrança estava a primeira vez que o vi, na turnê de 2010. Eu tinha 19, era ainda uma estagiária de jornalismo, mal tinha dinheiro para a passagem. Peguei um cartão de crédito emprestado.

Há 13 anos, cheguei cedo e fiquei bem perto da grade. Chovia muito, tanto quanto no domingo. Fui sozinha, o sentimento de autonomia e independência pulsava mais forte que o frio daquela noite.

Até o último domingo, olhar a arquibancada do Estádio do Morumbi iluminada era a lembrança mais tenra que tinha do ex-beatle. O show acabou depois da meia-noite. Não havia trem disponível nesse horário. Não tinha uber na época, táxi era caríssimo. Consegui um ônibus até o Bar do Estadão no centro e esperei na calçada o relógio bater 4h45, quando o metrô começou a funcionar.

Achava que aquela seria a única e última chance de conhecer um dos integrantes do Beatles, minha banda favorita. Se tivesse uma máquina do tempo, diria para a jovem Jéssica ter paciência: aos 32 ela estaria pulando ensopada num show do Paul McCartney.

No domingo passado, enquanto alguns se abrigavam em áreas cobertas, não arredei pé. Afinal, Paul acessa as memórias mais profundas do pai e de mim. Nós dois sentados no rancho, tomando uma cerveja, enquanto o CD girava em Can’t Buy me Love, que abriu o setlist de domingo.

Tenho admiração pelo Paul não só pelas vitórias, mas pelas perdas. Do meu lugar de fã, imagino o sir como alguém que precisou, variadas vezes, aprender a perder, mudar a rota e seguir em frente com dor e tudo; para então ganhar outra vez.

Let It Be me lembra o pai sentado na areazinha à noite. Luz apagada, cerveja do lado, ele e seu bigode dizendo Deus abençoe quando chegava da faculdade.

Paul escreveu essa letra após sonhar com sua mãe. Mary havia morrido há dez anos, em razão de um câncer. Deixe estar, na tradução livre, é um acalanto. Dessas músicas que parecem uma crônica, de tão imagética e sensível, com uma mãe soprando palavras que abraçam. Toda vez que as luzes são apagadas, e acendemos os celulares e cantamos com Paul em seu piano, rememoramos o amor por sua mãe.

E, feito Paul, quando vivo momentos difíceis e de insegurança, pai Tião vem sussurrar palavras de sabedoria.

Mas as histórias de morte também podem ter algo de tragicômico. Uma das teorias da conspiração mais populares (e bizarras) é de que Paul morreu em um acidente de carro em 1969, e foi substituído. Até hoje essa lenda vive entre os fãs, que apontam até sinais em algumas músicas e álbuns. Quem aí pode dizer?

Paul morreu, sim, uns tantos anos depois, em abril de 1970, com o fim dos Beatles. Para quem ainda não reconhece o luto dentro de processos de separação, esse é um grande exemplo.

As rupturas exigem energia do corpo e da mente. Mas um corte é um corte: sangra, arde, a casca sai, até um dia, talvez, cicatrizar.

Paul se isolou em sua fazenda na Escócia. Ficava dias sem tomar banho, não fazia a barba.

Deixar um trabalho, ser demitido, é duro. É perda, perda do laço daqueles com que você sonhou, chorou e cresceu junto. É uma morte em vida. Como em algumas aranhas, precisamos deixar o antigo corpo e seguir o caminho.

Segundo Paul, esse foi o período mais difícil de sua vida. "Os Beatles estavam se separando e esta era minha banda, este era meu trabalho, esta era minha vida", disse em entrevista para a BBC Rádio 4. É possível ouvir a entrevista completa com Paul aqui, em inglês.

Com grande apoio da fotógrafa e esposa Linda McCartney, Paul começou a gravar músicas em sua própria casa. Maybe I’m Amazed é dessa época, primeiro trabalho solo, lançado quase ao mesmo tempo do fim da banda. Linda era sua apoiadora e a canção foi dedicada a essa incansável parceira.

A dor do fim bateu em Paul quando Linda McCartney morreu em 1998, também em decorrência de um câncer. Com ela, teve três filhos e também fundou a Banda Wings.

Na época, Paul pediu que as homenagens fossem em formas de doações para instituições que pesquisassem a doença ou organizações protetoras dos animais. Quando alguém que amamos morre, queremos honrar o legado que a pessoa deixa na gente.

Na entrevista à BBC, confessou que chorou a morte de Linda ao longo de um ano: "Eu chorei muito. Era quase constrangedor, exceto pelo fato de que era a única coisa que eu podia fazer."

Eu sempre sonhei em conhecer um dos Beatles. Parecia que assim eu me aproximava da história do mundo. A música tem esse poder de conectar a gente a um tempo e espaço. Na história de mim, consigo voltar e estar ao lado do meu pai cada vez que ouço.

Nunca tive ídolos, nem sou fã de carteirinha de famosos. Mesmo sendo Paul um dos superstars que mais marcou a história da música mundial, com qualidade técnica indiscutível, são suas perdas e lutos que me fazem ouvi-lo e ir a seus shows. É o que o torna gente, além de autor e intérprete da trilha sonora da minha vida.

Quando Paul diz, no meio do Allianz Parque lotado, que tocar I’ve Got a Feeling era um jeito de tocar com seu "parça John" novamente, a emoção vem comprida e forte, como a chuva daquele dia. Essa canção foi a última que os dois criaram juntos, antes do fim do grupo. Para Paul, o amigo com quem criou algumas das canções mais bonitas que o mundo já ouviu. O cara com quem também rompeu, mas teve a chance de se reconciliar antes de sua trágica morte.

Enquanto ele tocava, as imagens de John subiam nos dois telões sobre o palco. Para nós, o ídolo. Era um dueto, não só de Paul e John, mas de dois Pauls em momentos históricos diferentes. Um sentimento catártico em um show que é quase um tributo: Paul também homenageou George Harrison com uma das minhas preferidas Something e relembrou Danny Laine, músico que fundou a Wings com ele e Linda, morto no início de dezembro.

Quando Paul evoca e homenageia seus mortos no palco, ele permite que façamos o mesmo: live and let die.

Jéssica Moreira

Jéssica Moreira é escritora e jornalista. Coautora do Blog Morte Sem Tabu e Cofundadora do Nós, mulheres da periferia

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