Morte Sem Tabu

Morte Sem Tabu - Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
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Qual é o problema com os nossos corpos?

Incabíveis e insuficientes para uma sociedade que nos julga o tempo todo

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"Meninas, engordei muito na pandemia, finjam que não repararam".

Essa foi a mensagem que uma amiga enviou em um grupo de WhatsApp de pessoas muito próximas pouco antes de se encontrarem em uma confraternização. Uma espécie de acordo preventivo de não manifestação sobre os corpos que estariam presentes.

Achei graça, mas ao mesmo tempo fiquei reflexiva. Já faz um tempo que percebi que nem sempre me sinto confortável nos lugares em que sei que meu corpo será julgado, pro bem ou pro mal.

Quatro meses depois de minha filha nascer eu estava bem em paz com a Terrível, aquela balança que me magoou muitas vezes durante a gravidez e agora jogava nove quilos a mais sobre o peso que julgo aceitável.

Na primeira vez da Beatriz na praia, algo muito especial para uma pessoa como eu que ama e depende profundamente da sua relação com o mar, tiramos várias fotos. Algumas foram para o Instagram e eu recebi dois tipos de críticas: nossa, você já tá ótima, não posta isso que magoa as mamães; olha, não se preocupa, que logo o corpo volta ao normal!

Como a maioria das pessoas, gosto de me olhar no espelho ou na foto e me sentir bem, mas acredito que o olhar varia de acordo com as ambições. No meu caso, sempre tive um teto de expectativas ante a minha total falta de afinidade com vegetais e seus parentes, e de um relacionamento possivelmente tóxico com chocolate.

Além disso, acredito que um corpo bom, como diria a minha mãe, é bastante relativo. O que espero encontrar quando tenho mais tempo e energia pra passar horas em atividades físicas é, naturalmente, bem diferente do que me parecia razoável quatro meses depois de parir um bebê no meio de uma pandemia.

Ao que parece, no entanto, o que acho do meu próprio corpo, dos sentimentos que estabeleço com ele, de estar relativamente satisfeita não é suficiente para que as outras pessoas o respeitem. Elas querem mais. Querem sempre mais.

Na verdade menos. "Com três quilos a menos você estaria ótima".

O relato da minha vida não é diferente de muitos que conheço: as melhores fases do corpo socialmente considerado ótimo começaram a partir de seus momentos mais tristes. No meu caso, quando tive depressão no fim da adolescência e nada me interessava, muito menos comer; e dez anos depois, quando minha mãe quase morreu, ficou 40 dias sob meus cuidados e mais quatro meses sem saber se viveria.

A partir desses dois episódios eu passei alguns anos recebendo elogios incabíveis.

"Incabível" é o nome do livro de poesia da Dani Rosolen, uma escritora incrível que conheci recentemente. Seus escritos falam de anorexia, compulsão alimentar, de não caber no mundo, nem caber em si, com 38 ou 55 quilos.

Eu queria te contar

logo de cara

mas achei que pela minha cara

você entenderia

quem dera

começou a elogiar minha silhueta

disse que meus braços finos eram lindos

meu peito pequeno, uau

quebrei-me em pedaços com o peso de suas palavras

e nunca mais me refiz inteira

"Incabível", Dani Rosolen

Capa do livro "Incabível", de Dani Rosolen
Capa do livro "Incabível", de Dani Rosolen - Editora Patuá


Uma vez eu tava bem despreocupada na piscina da casa do meu tio e uma prima falou "nossa, olha a barriga tanquinho dela". Não senti qualquer alegria, senti foi ansiedade, pensando que precisava sair logo dali pra que aquela imagem que por ângulo, luz ou o que quer que a estivesse produzindo não se dissipasse se o sol descesse ou eu me mexesse diferente.

Era dezembro. No meu mês preferido, muitas vezes fiquei feliz de ir logo embora de reuniões familiares pra não ter que resistir às sobremesas maravilhosas muito presentes na minha rotina natalina. O Natal tem esse pequeno problema de estar muito perto do ano novo, que costumo passar na praia, dentro de biquínis.

O fato de que eu estava pensando nisso enquanto comia alegremente bolos de brigadeiro na última segunda-feira provavelmente diz muito. Eu estava aliviada, porque a praia continua logo ali, mas eu não pensava em resistir às guloseimas, não pensava em quantos quilos a mais a Terrível me daria – e deve ter dado, mas não sei.

Se minha relação com a balança, os excessos e as restrições não desencadearam distúrbios alimentares, certamente não foi por não ter sido mais uma vítima do julgamento a que somos submetidas o tempo todo pelos corpos que ostentamos – ou escondemos.

Em uma das únicas visitas que fiz ao cardiologista, ele disse que eu deveria perder uns dois quilos. A chateação não passou quando poucos minutos depois ele mediu minha cintura e disse "se bem que não precisa, tá bom assim".

Isso foi no início do meu emagrecimento pós-doença da minha mãe. Essa fase durou muito tempo, talvez só tenha acabado mesmo com a minha gravidez. Mas nesse período de uns sete, oito anos, eu não fiquei igual o tempo todo. E nem sempre as expectativas das pessoas foram atendidas. Muitas vezes, achei mais fácil deixar de ir a lugares em que eu sabia que encontraria os olhares que me veem só como um corpo: nossa, você emagreceu, tá tomando remédio? Deu uma engordadinha né, logo volta ao normal.

Esses olhares julgam corpos na sociedade, todos eles, quaisquer que sejam, inclusive aqueles magros, mas não mais tão magros como outrora.

Eu me lembro de como há muitos anos olhava pra Ellen Roche, um ideal de beleza, e pensava caramba, é como se ela tivesse nascido assim e fosse morrer assim, o corpo parecia insuscetível a mudanças. Então de repente mudou e acho que senti até um certo alívio, olha como as pessoas podem continuar lindas com corpos diferentes. Mas as notícias se perguntavam o que teria acontecido: quantos quilos, quanto tempo, será que volta?

É como se firmássemos um compromisso com a sociedade de que, uma vez atingido certo patamar, tivéssemos que ficar ali pra sempre.

A última vítima famosa dos fiscais de corpo alheio, de corpo magro, mas nem tão magro, porque já foi mais, será que é a idade, será que é desleixo, foi a atriz Paolla Oliveira. Muitos textos já foram escritos sobre isso, mas me pergunto se quem expõe o que entende serem meras opiniões na Internet entende o tamanho do impacto que isso produz socialmente. Se pessoas de beleza incontestável e dificilmente alcançável têm corpos insuficientes, o que dizer de nós, reles mortais?

Insuficientes. Incabíveis.


Tem tanta coisa que eu não me lembro

como tudo começou, afinal?

eram para ser apenas alguns gramas e as coisas ficariam bem

mas eu me vi despencando

de quilo em quilo (...)

"Incabível", Dani Rosolen

A Dani Rosolen disse que demorou muito a entender que estava doente. Quem percebeu foram seus pais, amigos e professores. "Tudo começou em um regime inofensivo pra perder uns cinco quilos pras férias".

Acho que nem conheço mulher que nunca fez isso. Eu mesma, que tenho certa facilidade com jejuns, incorporei a prática à rotina há muito tempo. Isso só mudou com a gravidez e provavelmente pelo fato de que amamento até hoje. A verdade é que olho pra minha barriga tão diferente do que foi a maior parte da vida e penso que ela era casa da Beatriz. Fico triste quando bate uma luz que prejudica muito e ela sai na foto como não a vejo? Fico. Mas então me lembro do que a levou a ficar assim e a admiro exatamente como está.

Mas os outros não. Os outros continuam exigindo dos nossos corpos o que nem sempre estamos dispostas a oferecer.

O medo de crescer fez com que eu me apequenasse

até que não tivesse mais forma

que não fosse mulher

quem dirá gente.

"Incabível", Dani Rosolen

Dani era uma adolescente tímida. Seu corpo queria crescer e ganhar forma de mulher, mas ela não queria deixar. Ela se sentia limpa, quanto mais magra, mais limpa. De repente, aos 38 quilos, aceitou que estava doente, mas só quando já estava muito debilitada e teve medo de morrer.

Naquela época, era difícil encontrar conteúdos sérios sobre o assunto. Ao mesmo tempo, havia blogs que estimulavam impunemente a anorexia e a bulimia. Isso com certeza mudou nos últimos anos, mas continuamos repetindo velhos hábitos. A associação de magreza à beleza segue firme e forte e isso nos adoece, mesmo quando não chegamos aos extremos em que nossos estados ganham nome de distúrbio alimentar e nossos corpos são chamados de doentes.

Cada um sente suas próprias dores e muitas delas não estão sob o domínio da razão. Eu sei que de tempos em tempos minha relação com o corpo vai mudar, vou ficar mais e menos satisfeita. Reclamarei da falta de tempo ou do tempo passando e farei as pazes com minhas prioridades quando for preciso. Mas não admito mais que outros sejam responsáveis pela forma como eu mesma vejo meu próprio corpo. Não há problema algum com ele.

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