Morte Sem Tabu

Morte Sem Tabu - Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira
Camila Appel, Cynthia Araújo e Jéssica Moreira

Ninho do Urubu: 5 anos da tragédia

Dói muito sentir vergonha do Flamengo que a gente ama, diz Pedro Asbeg

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Era dia 8 de fevereiro de 2019. Para mim, uma data especialmente feliz. Não deu tempo de ver as notícias antes de entrar na minha banca de doutorado, no início da tarde. Já era noite quando saí da PUC-Minas e fui jantar em comemoração pela aprovação. Ninguém comentou nada, talvez para não estragar o momento. Nos dias seguintes, viajei de férias e fiquei sem entender o tamanho da tragédia que tinha acontecido no CT do Flamengo, meu time do coração desde que escutei o hino pela primeira vez por influência do meu pai. Eu teria um desgosto profundo se faltasse o Flamengo no mundo.

A forma como as coisas são contadas interfere no nosso sentimento sobre elas. Desgosto eu sinto agora pela diretoria do Flamengo. Pela negligência, pelo descaso. Acessei os sentimentos que deixei passar cinco anos atrás assistindo à série documental da Netflix "Ninho: Futebol e Tragédia". O incêndio no Ninho do Urubu, que matou dez jogadores de base do time, entre 14 e 16 anos, naquele dia 8 de fevereiro de 2019.

Jogadores de base são atletas em início de carreira. Promessas que ainda não se tornaram valiosas o suficiente para sequer ter condições seguras de moradia. "Onde achei que meu filho estaria mais seguro foi onde perdi", disse a mãe de Arthur Vinicius, 14 anos.

Ainda impactada pela série, conversei com seu diretor, o documentarista Pedro Asbeg.

Foto do diretor Pedro Asbeg com roupa preta e um gramado de futebol ao fundo
Diretor Pedro Asbeg - Divulgação

Morte sem Tabu: O que te levou a querer fazer a série?

Pedro Asbeg: Eu tenho muitos trabalhos documentais sobre futebol, é um tema que eu adoro porque sou apaixonado por futebol. E eu também torço pro Flamengo. Mas desde a época do incêndio e por um bom tempo eu preferi não me aprofundar no assunto, era muito doloroso. Só que aí o assunto veio até mim. Eu recebi um convite da Marina Bouças, produtora executiva do UOL, que desenvolve conteúdo audiovisual. Ela me disse que havia o interesse de produzir uma série sobre a tragédia no Ninho do Urubu. E foi assim que eu passei três anos mergulhado nessa história. Foi bem cansativo, doloroso, mas, ao mesmo tempo necessário. Não dava para fazer de outra forma, era preciso mergulhar mesmo. Houve muitos momentos difíceis, de muita dor, dor coletiva da equipe e dor às vezes solitária, quando eu ficava sozinho depois de uma entrevista no hotel ou na ilha de edição. A gente lidava com uma tristeza muito grande e ainda muito viva.

Morte sem Tabu: Essa tragédia tem muitas dimensões. Para mim, a série é também um documentário muito potente sobre desigualdade. Era uma preocupação de vocês?

Pedro Asbeg: Isso foi totalmente intencional, nós quisemos tratar dessa desigualdade que existe no universo do futebol, em que os dirigentes, os cartolas, são majoritariamente pessoas brancas e ricas e os jogadores são majoritariamente crianças e adolescentes pobres e pretos. Isso foi muito debatido desde o início da sala de roteiro, porque a gente entendeu que tratar dessa tragédia era também falar de outros temas comuns no Brasil: impunidade, velocidade da justiça e, especialmente, desigualdade social. O olhar dos clubes para esses meninos é um olhar mercantilista, eles são tratados como produtos que valem pouco. A ideia é de que, quanto menor for o gasto na manutenção deles, maior vai ser o lucro quando o clube conseguir vendê-los. É muito triste pensar assim, mas não é por acaso que aquele lugar onde os meninos dormiam era daquele jeito, que estava naquelas condições precárias. Era nitidamente arriscado alojar os meninos ali, o Flamengo sabia desse risco e, ainda assim, a diretoria do clube preferiu não fazer nada.

Morte sem Tabu: Quando eu soube, pelo documentário, sobre a carta sensível que o Fluminense mandou para a família da vítima Bernardo Pisetta, de 14 anos, eu pensei "não é possível que o Flamengo não fez nada parecido". Eu sei que a torcida fez homenagens, é muito bonito como isso é retratado na série. Mas o clube, institucionalmente, realmente não manifestou as suas condolências de nenhuma forma?

Pedro Asbeg: A carta do Fluminense expõe não só a ausência da diretoria do Flamengo, como uma total insensibilidade. É muito triste pensar que determinadas ações poderiam ser feitas pelos dirigentes do Flamengo sem qualquer custo. Não estamos falando de pagamento, indenização, mas de gestos simples, de humanidade, como essa carta linda do Fluminense, que nos emocionou, porque é muito forte, bem escrita, com a mensagem de que a família do Bernardo não estava sozinha. O Flamengo, ao contrário, deu a impressão aos familiares de que eles estavam sozinhos, desamparados e que, no máximo, cumpriria uma obrigação legal de pagar indenizações. Nunca houve um telefonema, um abraço, um contato, nada. Como pessoa que se aproximou dessas famílias e como torcedor, isso dói muito. Dói muito sentir vergonha do Flamengo que a gente ama.

Quarto com duas beliches de madeira e uma janela com grade atrás; um ar-condicionado está na parede e vários fios são vistos embolados
Simulação do quarto dos meninos do time de base no Ninho do Urubu - Netflix

Morte sem Tabu: Você acha que o luto dessas famílias é prolongado pela falta de um culpado pela tragédia, cinco anos depois?

Pedro Asbeg: Eu acho que o luto delas é eterno e que nenhuma dor se compara à morte dos meninos. Eu acredito que a falta de responsabilização aumenta essa dor, mas não é nisso que as famílias pensam. Quando a gente toca nesse assunto, aí sim notamos a revolta de pensar em como é possível que, tanto tempo depois, não haja ninguém responsabilizado por esse incêndio que matou dez adolescentes, com tantas provas sobre as irregularidades. Ninguém foi punido, ninguém foi identificado. Isso é muito absurdo e dói em todo mundo, inclusive nas famílias.

Mas acho que a maior dor é a do apagamento forçado da história. A tragédia só é lembrada pelo clube uma vez por ano ou, ocasionalmente, pela imprensa. A torcida, sim, canta uma música em homenagem às vítimas do incêndio em todos os jogos, no minuto dez. Mas o respeito à memória desses jovens nunca parte da diretoria, institucionalmente. E isso eu tenho certeza de que é uma dor muito grande. Logo depois do que aconteceu, foram colocadas no Museu do Flamengo dez camisas representando os dez meninos mortos. Quando o museu foi inaugurado, alguns anos mais tarde, já não havia mais qualquer tipo lembrança ou homenagem a eles.

Estamos falando de um clube que tem um centro de treinamento moderníssimo, onde, apesar disso, dez meninos morreram e não há qualquer memória dessa tragédia ali. É tão absurdo que, em um dia 8 de fevereiro, o Flamengo inaugurou uma capela dentro do Ninho e, nem assim, fez qualquer tipo de menção aos meninos. Esse apagamento forçado é muito doloroso. Ao menos, com a série, podemos dar algum alento a essas pessoas, pela certeza de que nós não esquecemos e de que essa história não será esquecida.

*****

Eu não me esquecerei. Até aqui, o Flamengo de 2019 representava, para mim, os minutos finais da Libertadores com uma virada que eu e meu pai assistimos incrédulos e emocionados. Não mais. O Flamengo não é nem pode ser maior que as vidas dos dez meninos que, também em poucos minutos, morreram naquele dia 8 de fevereiro.

Imagens de incêndio, com fogo em telhado e janela
Simulação do incêndio no container em que ficavam os quartos dos meninos do time de base do Flamengo no Ninho do Urubu (série Netflix) - Netflix

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